Gaptridys (Floresta)

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O som horrível de um punho atingindo a face de uma pessoa chamou a atenção da família. Em seguida, ouviram-se gritos, que ecoavam em conjunto com o repetitivo som grave que ecoavam da vitrola. “E-eu não aguento mais! Não suporto, eu não suporto!”, O agressor esbravejou, colocando uma das mãos na cabeça, seus olhos arregalados observando seu irmão, que agora estava apoiado no sofá, se recuperando do soco que atingiu sua face. “Esse som! Toda hora, todo dia! Cada segundo!”
Duas mulheres desceram apressadamente a escada, para ver exatamente o que estava acontecendo na sala. Ambas olharam de maneira nervosa, após perceberem que era somente uma briga entre os dois, para as janelas da sala de estar. Bloqueadas, com tábuas de madeira impedindo parcialmente o brilho ligeiramente roxo que vinha através delas. Após isso, elas desceram mais ainda as escadas, cada uma indo em direção a um dos homens, dizendo tão desesperadamente para que se acalmem. Os quatro tinham marcas horríveis ao redor de seus olhos, escuras, como se não dormissem há dias.
A vítima do primeiro soco, no entanto, não teria somente marcas escuras, e sim roxas também, na manhã seguinte. Ele respirava de maneira ofegante, rangendo seus dentes enquanto as palavras de sua esposa tentavam futilmente acalma-lo. Era como se as palavras simplesmente caíssem em ouvidos surdos, surdos de fúria. A mulher foi empurrada para a esquerda, tendo que se segurar firmemente em um dos sofás para que não caia no chão. O homem, antes vítima, agora tornara-se o agressor, avançando furiosamente em direção ao outro, golpeando-lhe no estômago, coisa que tirou o ar de seu irmão mais novo. Segurando-o pela gola, ele pressionou o mais novo contra a parede, sua respiração ofegante, de uma raiva incontrolável.
- Acha que eu queria isso, irmão?! É isso, ou a morte! – Ele puxou e empurrou seu irmão contra a parede de novo, com força. A escrivaninha ao lado, com a vitrola sobre ela, balançou perigosamente, fazendo tremer também a vitrola, que nem agora parava o som grave e dissonante que ecoava pela casa, e pelos horrores além dela. Tal combate acordou as três crianças, que se encolheram em suas cobertas e taparam seus ouvidos, enquanto observavam, de maneira nervosa, as janelas e as inúmeras velas e lamparinas acesas, espalhadas pelas mesas e pelos cantos dos quartos. Na sala de estar, haviam também lamparinas e velas, um número extremamente grande delas, quase como se a família compulsivamente estivesse as coletando e acendendo.
O irmão mais novo chorava e abaixava sua cabeça, desviada para longe do rosto do irmão mais velho, antes de golpear-lhe também no estômago, e mais uma vez em seu rosto, lhe afastando com um empurrão. “Mas isso é puro tormento! As crianças, as mulheres! Deuses, irmão, olhe para elas! Isso é loucura, loucura!”, exclamou o mais novo. Os sons da vitrola quase imitaram a voz do rapaz com lágrimas nos olhos, exceto que em um tom que tornava a voz irreconhecível, grave. Nenhuma palavra podia ser distinguida a partir da vitrola, e nesses momentos, em que o objeto parecia ter vida própria, todas as pessoas da sala permaneceram em silêncio completo. O irmão mais novo foi o primeiro a falar. “Você viu?! Você ouviu?! Deve ter um jeito melhor de evitar isso, deve ter... Se somente nós parássemos esse som... Por um... Segundo! Só... Um... Segundo!”
E então, no desespero do homem, ele já alcançava com ambas suas mãos trêmulas a vitrola, quando foi interrompido pelo irmão mais velho, que segurou mais uma vez sua blusa, e o jogou no chão, atrás de si. As mulheres choravam e colocavam suas mãos na cabeça, puxando ainda mais seus cabelos que já muito estavam desarrumados; mulheres que há muito perderam quaisquer vislumbre que as tornavam unicamente belas, substituídas por apenas uma casca de suas antigas existências. A cabeça do irmão mais novo passou perigosamente perto do corrimão da escada. Logo o agressor raivoso foi para cima do homem que há muito havia perdido sua vontade.
- Você é fraco, irmão! Hahahahah! Olhe para você, uma putinha que não consegue suportar um pouco de música! – O irmão mais velho também parecia há muito ter perdido sua sanidade. Ele começou a golpear furiosamente o peito e o rosto do homem que estava indefeso no chão, tentando parar os avanços extremamente hostis do que antes era a pessoa que devia protege-lo.
- Tem tanto assim um desejo de morrer?! Posso providenciar isso, irmão! Ah, se posso... Hahaha... – Os olhos do irmão mais velho se arregalaram enquanto ele ria de maneira histérica e pausada, soluçando enquanto seus desejos mais maníacos afloravam na pessoa que jurou amar. Afinal, as promessas que fez ao seu pai não valiam de nada agora que sua mente foi danificada e deformada pela realidade perturbadora que se encontravam. Suas mãos apertavam o pescoço do mais novo em uma intenção assassina, as mulheres gritavam e tentavam separar ambos. A esposa do mais novo tentava desesperadamente puxar o braço do homem, mas acabou sendo golpeada com uma cotovelada, bem em seu nariz, que começou a sangra. A mulher gemeu e chorou mais ainda, com a dor excruciante de um nariz quebrado invadindo seu corpo.
Um olhar já bastou para a esposa do mais velho, que paralisou de medo antes que pudesse encostar sequer um dedo no agressor. O fogo das lamparinas e das velas tremeluziam, ameaçando deixar todos eles na escuridão, enquanto da vitrola as risadas maníacas do irmão mais velho ecoavam, ainda mais guturais e perturbadoras. A mente das crianças, já fragmentada pelos constantes traumas, ameaçavam perder qualquer apoio que tinham na realidade, quando as mãos que apertavam tão fortemente – e até violentamente – os próprios ouvidos não conseguiam impedir que o som do disco de vinil invadisse suas mentes. Eles agora choravam em posição fetal, um deles tendo espasmos cada vez mais agressivos enquanto se encolhia.
Ambas as tentativas das mulheres, no entanto, serviram de algo. O mais novo recuperou seu fôlego, dando uma joelhada entre as pernas do mais velho, que tremeu enquanto caía para o lado, soltando sons tão viscerais de dor. O mais novo se arrastava alguns degraus acima, na escada, respirando ofegante, com os olhos arregalados, aparentemente traumatizado com o que havia acabado de se manifestar de seu irmão, que jazia gemendo no chão, sem fôlego. “Isso é loucura! Loucura! Eu não suporto isso! Olhe para você, irmão! Olhe o que você fez! Olhe sua mulher, olhe sua cunhada! Meu Deus... O nariz dela... O que você fez?!” O mais novo se erguia do chão, agora com uma fúria recém-descoberta. Afinal, seu irmão havia machucado o pouco de apego que tinha à realidade. O irmão mais velho se levantava também, apenas para ser recebido com outro golpe em seu rosto.
“SEU FILHO DA PUTA!” O irmão mais novo, com lágrimas em seus olhos inundados de fúria, segurou a cabeça do mais velho, e golpeou-a contra a parede. A cabeça do mais velho sangrou, mas ele conseguiu sair das mãos de seu irmão, se afastando até perto da vitrola e o olhando, agora ambos completamente embebidos na loucura de suas mentes fragmentadas e maculadas. A vitrola ainda imitava os sons, o que parecia piorar ainda mais a situação, como vozes demoníacas sussurrando nos ouvidos de ambos, impulsionando-os a cometer os mais terríveis atos. Em uma fúria cega, o irmão mais velho avançou contra o mais novo, segurando-lhe pelos braços e, em uma força quase sobrenatural, originada de uma adrenalina que se igualava àquela que aflorava em humanos, em uma situação de vida ou morte, o jogando escada abaixo. O mais novo rapidamente preveniu que algo pior acontecesse, amortecendo a queda, mas não antes que suas costas batessem tão violentamente contra a escrivaninha. Balançando de maneira errática, ela praticamente desmontou sobre si, a poeira caindo em seus olhos, e a vitrola atingindo sua cabeça.
Naquele momento... Toda a casa ficou silenciosa. Os três ficavam em estado de choque, observando o mais novo atordoado e machucado no solo. Um frio tão gelado quanto os invernos rigorosos daquele lugar desceu lentamente pela espinha dos três, e atingiam seus estômagos como um soco: a vitrola havia se quebrado e o som... Sumiu.
. . .
Para o irmão mais novo, o mundo ao seu redor estava estranho. A poeira em seus olhos o impedia de enxergar muita coisa, e a dor em sua cabeça de pensar em muita coisa. Ele estava desnorteado, a fúria se esvaiu de sua existência como os rios deságuam no mar. Por um momento, ele estava em paz, e a primeira coisa que percebeu foi que... O som não estava mais lá. Estava quieto, pacífico; um silêncio confortável, o bastante para que ele conseguisse tão facilmente dormir, se seu corpo não doesse tanto. Ele tateou seus arredores suavemente, seus ouvidos zunindo levemente, enquanto ele tentava pelo menos ficar sentado. Ele não parecia ter quebrado nada em seu corpo, mas de novo... O que ele estava fazendo, para começo de conversa? Era uma briga, era uma conversa? Um momento de clareza, proporcionado pela tão prazerosa ignorância de uma mente nebulosa, lentamente adquirindo mais uma vez suas raízes na realidade.
Ele conseguia escutar sons abafados, as vozes das mulheres e também de seu irmão mais velho, que sempre parecia estar sofrendo muito, mesmo que em silêncio. Ele esfregou um de seus olhos, piscando várias vezes, tentando discernir qualquer coisa. A luz das velas estavam lentamente se apagando, a cor laranja sendo substituída pela luz roxa externa, de crescente intensidade. Ele virou sua cabeça para longe, pois observa-la fazia seu cérebro doer; talvez por conta de ter sofrido uma pancada na cabeça. Os sons aos poucos ficavam mais claros, acima do zunido que aos poucos diminuía. Mesmo que ele não consiga realmente ver o que estava acontecendo, afinal a luz era brilhante demais, dolorosa demais, ele escutava... A madeira se rompendo. Ele sentia farpas de madeira atingindo seu corpo, o que tornava as coisas ainda mais dolorosas. O vidro se rompia em um som agudo, quase como um grito, mas ele não sentiu cacos de vidro em sua pele; não pôde sequer escutar o tilintar deles no solo.
O homem conseguia ver borrões em sua visão, enquanto as duas mulheres gritavam em horror, e começavam a correr desesperadamente: uma em direção à cozinha, e outra escada acima. Seu irmão, no entanto, flutuava no centro da sala, tendo terríveis convulsões. Do pouco que conseguiu distinguir, ele viu algo sair de seu crânio, na altura dos olhos, e um líquido escarlate escorrer pelo seu corpo. O líquido escarlate, originado do que quer que tenha explodido do crânio de seu irmão, respingou tão violentamente em si, e ele sentia algo macio, molhado e viscoso, embora ainda de alguma forma sólido, sobre sua mão esquerda, que nesse momento estava apoiada no solo. Do que quer que esteja em sua mão escorreu um líquido, também. Quente, ele achava caminho entre os dedos do irmão mais novo, proporcionando uma sensação estranha para um corpo grogue de dor. A visão dele aos poucos foi se focando um pouco mais, os borrões sumindo gradativamente, embora seu corpo ainda esteja coberto pelas partículas da escrivaninha empoeirada. Seu nariz estava sofrendo com isso, mas o cheiro metálico no ar era facilmente perceptível, mesmo para um olfato afetado pela poeira.
O que estava em sua mão era uma esfera esbranquiçada; isto é, ela não estava completa. Havia... Alguns fios, que pareciam repugnantes ao primeiro olhar. No final desses fios, que estavam ligados à esfera branca, uma luz roxa tremeluzia, com uma fumaça esbranquiçada saindo dessa cor. Seus olhos se clareando um pouco mais, ele conseguia ver... Íris e pupila, na esfera branca. O que... Isso era... O olho de seu irmão. Ele afastou sua mão, e a balançou no ar, com um surto de adrenalina finalmente percorrendo seu corpo, o fazendo se esquecer da dor que sentia. Ele olhou desesperadamente ao redor, observando que agora houve mais uma explosão de sangue, dessa vez originada da boca de seu irmão. O corpo dele ainda tinha espasmos epiléticos, a pele de seu rosto estava se partindo e revelando os ossos e dentes embaixo dela, transformando o seu irmão em um corpo irreconhecível. Cacos de vidro flutuando acima do chão, quase como se estivessem suspensos no tempo, refletindo para todos os lados o brilho roxo, que criava lampejos de luz por toda a sala, que a esse ponto estava coberta de respingos de sangue.
O irmão mais novo se levantou, sua mente repleta do mais profundo terror enquanto suas pernas praticamente funcionavam sozinhas. Um instinto primitivo: pupilas dilatadas, suor descendo pela testa e pelo pescoço, seu corpo se movendo mais rápido do que o normal, seus sentidos aguçados, focados em seus arredores. Os olhos, involuntariamente, não saíram do corpo epiléptico de seu irmão, que flutuava no centro da sala, seus braços agora se contorcendo em terríveis ângulos, ulna e rádio se expondo em múltiplas fraturas. Tarsos e metatarsos explodindo para fora, rasgando a pele. Sua mente fez o trabalho piedoso de não focar a atenção no agressor, que nesse momento o irmão mais novo só conseguia descrever como... Uma massa gasosa, que se contorcia e se movia violentamente, revelando entre um véu enevoado branco... Alguma coisa, alguma coisa sólida. Enquanto suas pernas subiam a escada, sua mente apenas conseguiu lembrar de uma coisa...
... Seu pai. Já velho e grisalho, ele balançava lentamente em sua cadeira de balanços. Molhando os lábios, ele começou a falar tão cuidadosamente; sua voz trêmula, amedrontada e envelhecida. Tomou cuidado para que ela não seja escutada por nenhuma outra pessoa exceto os seus dois filhos adultos, ambos se posicionando na frente dele, agachados, segurando cada um em uma mão ressecada e trincada.
“Primeiro... Ela abre sua mente.”
O irmão mais novo cambaleou pelo corredor, batendo com seu ombro na parede acidentalmente, quase perdendo o equilíbrio enquanto tão desesperadamente tentava achar um meio de escapar. Ele tentou a primeira porta, a porta onde estavam as crianças. Ele conseguiu escutar choros e gritos vindos do lado de dentro, assim que tentou abrir sem sucesso. Ele continuou tentando, as palavras abafadas e indistinguíveis ecoando através da madeira. O homem escutava estalos horríveis vindos do andar de baixo, em conjunto com o som traumatizante do sangue espirrando e carne rasgando.
“Segundo... Toma sua voz.”
O homem, de tanto tentar, acabou por arrancar a maçaneta da porta. Sangue escorria de sua cabeça, e de diversas partes de seu corpo, provenientes das grandes farpas de madeira originadas da explosão da própria estrutura daquela casa. Ele conseguiu escutar, até agora, uma parte da estrutura se rompendo, em diversos pontos da casa, mais uma vez os vidros explodindo, mas sem o tilintar dos cacos no chão. Ele escutava tudo... Com detalhes, até mesmo a excruciante tortura que a massa proporcionava ao seu irmão. Olhando para o chão, ele percebia momentaneamente pingos de sangue, cujos traços acabavam naquela porta que havia acabado de tentar. Sua mulher estava ferida também, mas nesse ponto nem mesmo ela importava.
“Terceiro... Seus olhos.”
Ele tentou a porta seguinte. Ela facilmente cedeu e abriu: o banheiro. Ele rapidamente trancou a porta atrás de si, respirando ofegante enquanto olhava desesperadamente os seus arredores. Sua visão estava turva, afinal ele estava perdendo sangue. As memórias continuavam, enquanto suas mãos trêmulas alcançavam a estante de remédios, vários deles antidepressivos ou remédios para conseguir dormir. Existiam muitos frascos vazios, o estoque desses medicamentos estava quase completamente acabado. Ele jogava para trás vários e vários, a procura de um em específico. Quando, em seu pânico, ele não conseguiu encontrar o que procurava, ele se ajoelhou no chão, procurando entre aqueles que havia desesperadamente espalhado.
“Quarto... Seus músculos.”
Finalmente encontrando o frasco que procurava, ele se sentou no chão e se encolheu no canto, despejando de maneira trêmula todos os sete comprimidos em sua mão. Ele apenas precisava de um. Sua mente estava fraturada, ele apertava relutantemente os comprimidos em sua mão, enquanto buscava desesperadamente uma outra forma. Qualquer coisa, qualquer coisa!
“Quinto... Seus ossos. A partir daqui... Vinte e dois segundos. Metade, para crianças.”
Os sons horríveis ecoavam pela casa. Ele conseguia também escutar um grito feminino, que foi rapidamente silenciado e substituído com o som ainda mais horrível, embora abafado, da mulher engasgando com o próprio sangue. Lágrimas escorriam dos olhos do mais novo, enquanto ele balançava seu corpo para frente e para trás, quase em posição fetal. Seus olhos arregalados em puro horror, sua mente inconscientemente contava. Vinte... Vinte e um... E então, o partir dissonante e explosivo de ossos. O baque molhado... Dos interiores... Caindo... A náusea subiu instantaneamente, o homem se inclinou sobre a banheira, e regurgitou todo o pouco conteúdo que tinha em seu estômago, apenas pela expectativa e sua própria mente distorcida e imaginativa.
“Vinte e dois... E tudo está terminado. Confiem em mim, crianças, é a verdade. É misericordioso, é preciso.”
Se sentando mais uma vez, seu corpo fraco, ele reiniciou a contagem. Três... Quatro... E seus olhos percorriam nervosamente as pílulas em sua mão. Está tudo acabado. O caminho mais fácil, o caminho menos doloroso. Uma mordida, e tudo está acabado! Toda a loucura, tudo, tudo! O homem só queria um momento de paz, sem a música demoníaca praticamente explodindo seus tímpanos, imitando cada pequeno som da casa, e inventando novos apenas para distorcer ainda mais a sanidade dos residentes. As palavras escapam do cérebro do mais jovem, o pensamento se torna abstrato demais para ser colocado em palavras, assim como uma criatura tão abstrata não possa ser descrita tão precisamente com o dialeto convencional.
“Vocês cresceram tanto, e eu... Orgulho de vocês. A floresta infelizmente tomou meus olhos, se não eu os observaria tão atentamente, uma última...”
E os olhos do mais novo subiam cuidadosamente até o rosto do seu pai. A pele ressecada e caída, os lábios trincados e machucados. O semblante de um nariz, que, naquele ponto, eram somente narinas na verdade. E os olhos... Ah, os olhos que lhe traziam pesadelos, na madrugada. Não existiam. A pele, costurada nos orifícios, com uma cicatriz horrível ao redor deles. Os poucos cabelos, bagunçados sobre a testa manchada, dava uma impressão ainda mais fantasmagórica ao seu pai, também de mente fragmentada.
O homem começou a chorar, encolhido no canto do banheiros, aos poucos começando a se acalmar, mesmo com tantos sons terríveis do lado de fora. Vinte e dois. Assim que escutou o grito da segunda mulher, agora tão mais próximo de si, recomeçou sua contagem, agora falando de maneira rouca, em voz alta. “U-um...”. As luzes roxas tremeluziam por debaixo da porta, iluminando levemente o banheiro.
“Está anoitecendo, agora... Sinto em meus ossos. Entrem, meus filhos, aqui de fora... A floresta quer terminar...”
O velho estava cada vez com maior dificuldade de sequer terminar sua fala. Os filhos logo desistiram, abraçando seu pai uma última vez, e murmurando palavras de carinho. O velho apertava os dedos de ambos, em uma tentativa tão fraca de acalma-los. Estava de fato anoitecendo. O velho escutou a porta trancando atrás de si, e parou de se balançar na cadeira. “Por que... Meus olhos primeiro?” ele murmurou, para a floresta.
“Onze.” E então, o baque molhado. O sexto baque molhado. Ele abaixou sua cabeça, colocando o comprimido em sua boca, lentamente o mordendo, sentindo aquele tão estranho gosto em sua língua. Ergueu suavemente sua cabeça, encostando na parede. Uma pequena poça de sangue se formara ao seu redor, ele já estava muito tonto. Não que faça muita diferença, no final das contas. A madeira da porta se rompeu, a excruciante e brilhante luz púrpura invadiu completamente o banheiro. O homem começou a sufocar, mas seus olhos não deixaram de funcionar, olhavam fixamente para frente, enquanto a massa gasosa se aproximava lentamente dele. A névoa branca sublimava da superfície, regida por leis além da compreensão, pois parecia simplesmente desaparecer. Bolhas se formavam constantemente na superfície gasosa, se redistribuindo freneticamente por toda sua estrutura.
Algo impossível, algo absurdo, algo inexplicável que se originou da floresta. Seria a natureza? Seria Deus? Os pensamentos na mente do homem aos poucos cessavam, parando de tentar compreender, pois isso apenas fragmentaria sua mente ainda mais. Não que faça diferença... No fim. A massa se abria conforme se aproximava, justamente quando o homem estava preparado para fechar seus olhos e aceitar o que quer que viria a seguir. Dentro da massa amorfa, ele reconheceu. Os órgãos expostos e funcionais, o coração pulsante, os intestinos, o fígado, os rins... Os ossos e músculos distendidos como espinhos, criando uma diabólica caricatura de membros humanos. Um caos desordenado e pulsante, sangrento e bizarro. Mas a cabeça permanecia a mesma. Ahh... O homem reconheceria essa face em qualquer lugar.
Especialmente pela falta dos olhos.
“Finalmente posso te ver... Meu filho.”

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