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Estamos todas lá, na sala de estar, prestando atenção em Vanessa, o que provavelmente é sua ideia de paraíso. Ela parece o tipo de garota que está sempre muito dedicada em ser o centro das atenções.

E eu fico ali esperando que o chão se abra sob meus pés ou que guardas entrem correndo para me prender por ter me atrevido a chamar a princesa por um apelido maldoso.

Mas então seus lábios se curvam naquele sorriso-de-gato-que-pegou-o-canário, Vanessa olha para a dra. McKee e diz:

— Sebastian me contou que haveria tocadores de gaita de fole no primeiro dia. — Ela levanta um ombro de modo indiferente e elegante. — Acho que não me sinto bem-vinda em lugares que não providenciam a ostentação apropriada.

E então ela pisca – ela realmente pisca! Para uma professora! Não, não uma professora, uma diretora – e risos se espalham pela sala.

Dou um suspiro de alívio, apenas para sentir meus ombros se retesarem novamente quando Vanessa volta seu olhar para mim.

Ela pisca de novo, mas dessa vez não é fofo ou debochado.

Sacudindo a cabeça, a dra. McKee junta as mãos atrás das costas.

— Tentaremos fazer melhor no futuro, senhorita Lopes — ela diz. — Talvez alguém possa tocar o kazoo quando você estiver a caminho do banheiro pela manhã.

Mais risadinhas, e então ela atravessa a sala até uma pesada porta de madeira, abrindo-a e nos chamando a entrar.

— Senhorita Lopes? — pergunto a Isabelle em voz baixa conforme caminhamos com o grupo de garotas. — E não Sua Majestade?

— Isso seria para a rainha — Isa responde sobre os ombros. — Vanessa é uma SAR.

Quando eu apenas a encaro, ela explica:

— Sua Alteza Real. Mas, de qualquer maneira, isso não importa aqui. Sem títulos, essa é a regra. É por isso que sou senhorita Nogueira em vez de lady Isabelle.

Eu quase tropeço em meus próprios pés, o que provavelmente causaria algum tipo de efeito dominó.

— Você é uma lady? — pergunto, e Isabelle acena com a cabeça, tirando a franja pesada dos olhos.

— Meu pai é o duque de Alcott, o que faz de mim uma lady, mas definitivamente não uma SAR — então ela abre um sorriso largo. — Ainda. Mas, enfim, Vanessa é senhorita Lopes enquanto estiver aqui, isso mesmo.

Talvez seja porque passei tanto tempo pensando sobre o que Gregorstoun significaria para mim sem prestar muita atenção em como o colégio funcionava, ou talvez seja porque Gregorstoun faz um bom trabalho minimizando o quão sofisticado realmente é, mas eu não tinha mesmo pensado em como seria estudar com alguém que possui um título de nobreza. Os membros da realeza são uma coisa, mas até as pessoas “normais” daqui são mais ricas do que eu acharia que fossem, e isso é…

“Estranho” nem começa a explicar. O que mais eu não sei?

O quarto para o qual fomos levadas é muito menos confortável do que a sala de estar e uns dez graus mais frio. As paredes são de pedra, as janelas são mais grossas e, no centro do piso tem uma mesa redonda de carvalho de tamanho colossal. Os lustres pendurados no teto parecem feitos de… galhadas? Sim, definitivamente são galhadas, e mesmo que usem lâmpadas no lugar de velas, o efeito ainda é terrivelmente medieval.

— É aqui que somos consagradas como cavaleiras? — pergunto a Isabelle e ela ri de deboche enquanto nos sentamos lado a lado à mesa.

Vanessa senta-se com aquelas duas garotas na outra ponta da mesa e Isa a olha de relance.

— Nossa, ela é abusada demais — Isabelle murmura. — Eu tinha esquecido como ela era.

— Você já conhecia a Vanessa? — pergunto, e ela balança a cabeça afirmativamente.

— Círculos sociais similares e coisas assim. Mas ela nem sempre foi desse jeito. Na verdade, quando éramos pequenas, eu gostava muito dela, mas, quando ela fez treze anos, a arrogância tomou conta, francamente. Sebastian sempre foi um desajustado. Ele foi banido de um quarteirão inteiro de Londres quando tinha só doze anos. É o que dizem por aí.

— E é nessa família que você quer entrar? — pergunto.

— Seb é um projeto com potencial, e não há nada que eu não possa melhorar — ela responde.

Estranhamente, acredito nela. Isabelle provavelmente poderia liderar exércitos inteiros em uma batalha só com o poder de sua confiança.

E, sentada nesta mesa, uma batalha parece algo viável de se planejar.

A dra. McKee está em pé do outro lado da sala, ao lado de uma enorme armadura e bem embaixo de uma daquelas janelas grossas com o vidro ondulado que mal deixa a luz do sol penetrar a sala.

— Senhoritas — ela diz com um sorriso caloroso e sincero —, mal posso expressar o quanto estou animada em receber vocês aqui em Gregorstoun. Esperei por seis anos pra poder me dirigir a uma sala cheia de estudantes com “senhoritas”.

Isa se inclina próxima a mim.

— Eles contrataram a dra. McKee pra tirar Gregorstoun da Idade das Trevas — ela sussurra. — Então é claro que ela começou uma campanha a favor da admissão de mulheres, mas levou anos. Por motivos de patriarcado.

Eu aceno com a cabeça. Faz sentido.

A dra. McKee ainda está falando, mas, para dizer a verdade, ainda estou nas garras do jet lag, então estou me esforçando para acompanhar até que a ouço dizer: “o Desafio”.

Aí eu me aprumo.

— O Desafio é uma das marcas da educação de Gregorstoun. Nos anos passados, foi usado como oportunidade para algumas demonstrações ultrapassadas de masculinidade, então, para se encaixar nos novos tempos e em nossos compromissos atuais com o tipo de colégio que gostaríamos de ser, nós decidimos que o Desafio deste ano será um pouco diferente. Por exemplo, vocês serão divididas em duplas em vez de trabalhar em equipes maiores.

É tão estúpido, tão ensino fundamental da minha parte, mas, assim que a dra. McKee diz “em duplas”, sinto o estômago revirar um pouco. Isabelle parece legal, e eu não me importaria de me juntar a ela, mas talvez ela já tenha uma amiga íntima, alguém que ela conheça há mais tempo do que apenas uma hora, alguém com quem ela queira se juntar.

Ou será que os pares serão formados aleatoriamente? Isso pode me salvar da humilhação de tentar achar uma parceira, mas ainda não parece o ideal.

E então a dra. McKee sorri e basicamente acaba com a minha vida.

— E, pra deixar essa experiência mais imersiva, sua parceira será sua colega de quarto.

Não consigo não olhar para Vanessa do outro lado da mesa, que também está me encarando de volta com uma expressão entediada e levemente irritada.

Eu e Veruca Salt? Juntas no meio da natureza selvagem?

— Claro, o Desafio só começa daqui a um mês — a dra. McKee continua com um sorriso. — Então vocês terão bastante tempo para planejar sua estratégia junto com o restante das tarefas da escola.

No restante do encontro ela fala das regras e dá instruções para conciliar a “vida acadêmica com atividades sociais”. E, então, somos liberadas para voltar aos nossos quartos para “descansar um pouco” antes das aulas iniciarem oficialmente amanhã.

Eu me despeço de Isa com um aceno antes de subir pelas escadas, meus braços e pernas pesados e meus olhos arenosos. Só consigo pensar em me jogar na cama e dormir, mesmo que mal tenha dado cinco horas da tarde.

Mas, quando chego no quarto, Vanessa já está lá, parada ao pé da cama, olhando pela janela.

Ela também está falando no celular, apesar de uma das palestras que acabamos de ouvir ter sido sobre entregar nossos celulares no escritório principal. Nós podemos usá-los nos fins de semana, mas não durante a semana de aulas, algo que eu me lembro de avisar ao meu pai por e-mail.

Mas parece que as regras não se aplicam à Vanessa.

— Bom, ela vai ter que superar isso — Vanessa está dizendo agora, com um braço cruzado sobre a barriga enquanto continua olhando pela janela. — Eu disse pra ela que essa era uma das condições pra que eu estudasse aqui.

Ela faz uma pausa e olha para mim por sobre os ombros, os lábios se estreitam brevemente. Então ela se vira de volta para a janela.

— Não se preocupe. Estou tão segura quanto um forte aqui e você não precisou ter segurança particular. Nem o Seb. Então por que eu sou a exceção? E já vou avisando, se você disser que é porque sou uma garota, vou dizer aos jornais que você dormiu com uma mantinha de bebê até os onze anos.

Eu não quero ouvir a conversa, mas você meio que é obrigada a fazer isso quando divide o quarto com alguém, e a curiosidade me faz chegar um pouco mais perto da janela para ver o que ela está observando.

É o cara de antes, o de rosto avermelhado e terno escuro, e ele está guardando bagagens no porta-malas de um SUV preto. Ele tem um celular no ouvido também e, enquanto eu observo, ele larga uma mala, levantando a mão livre na direção do colégio e, imagino, de Vanessa.

Seus lábios se curvam num sorriso lento enquanto ela levanta a mão para acenar de volta, mas ele não está olhando.

Então, com um suspiro, Vanessa se vira da janela, sentando-se na cama. Ela tem os mesmos lençóis brancos e cobertor verde sem graça que eu, e posso ver que ela acrescentou algumas almofadas. Ela também ocupou a parte de cima inteira da cômoda, e franzo a testa ao dar uma olhada nas velas aromáticas caras, nas fotografias emolduradas de Vanessa e um punhado de garotas igualmente lindas usando grandes chapéus e vestidos maravilhosos e… uma mão de porcelana?

Aparentemente um porta-anéis, já que todos os dedos estão decorados com peças reluzentes.

Enquanto Vanessa continua papeando no celular (Com um príncipe, sussurra uma parte do meu cérebro, que um dia será rei e que é irmão dela, porque ela é uma princesa, você está morando com uma princesa de verdade), abro o zíper da minha bolsa e tiro a sacola Ziploc que eu trouxe com minhas amostras favoritas de rochas.

Sim, talvez seja um pouquinho esquisito ter rochas favoritas, mas enfim. Eu achei algumas delas em viagens com meu pai, e outras são de eventos de pedras preciosas e minerais que eu obriguei ele e Anna a ir comigo. Elas são uma lembrança agradável de casa.

Aproximando-me da cômoda, não olho para Vanessa quando começo a tirar algumas das velas de lugar e movê-las para o lado mais próximo da cama dela.

— Alex, deixa eu te ligar mais tarde — ouço-a dizer. — Tenho uma disputa de território pra resolver.

Ótimo.

Mas eu a ignoro, mantendo a atenção no que estou fazendo enquanto posiciono minha peça favorita de hematita a alguns centímetros daquela estatueta estúpida de mão.

Encostando-se no armário, Vanessa me analisa.

— Você é uma bruxa? — ela finalmente pergunta. — Que curte cristais e essa coisa toda?

— Não — respondo, colocando meu citrino à esquerda da hematita. — Sou uma geóloga. Ou serei uma.

— Uma bruxa seria melhor — ela diz. — Ou pelo menos interessante. Enfim, qual é seu nome, ó minha colega de quarto?

— Gio — digo, finalmente olhando para ela.

Eu imagino se algum dia me acostumarei a olhar para alguém tão atraente assim. Porque, sendo um pé no saco ou não – e ela parece ser um pé no saco e tanto –, nunca vi olhos como os dela, num tom tão brilhante de castanho que parecem ser do mesmo castanho meio escuro meio claro de seus cabelos.

Aqueles olhos estão semicerrados para mim agora.

— Gio o quê?

Isso é algum tipo de teste?

— Gio Lima — respondo. — Desculpa, isso é tudo que há. Sem sobrenomes ilustres ou de linhagens reais ou algo assim.

Vanessa volta para sua cama, zombando.

— E americana pra completar.

— Não apenas americana — digo a ela. — Texana.

— As surpresas de hoje não vão terminar nunca? — ela murmura, se esticando para puxar uma revista da bolsa de mão de couro jogada no chão.

Eu olho para ela por um minuto, então volto à minha coleção de rochas. Tocando a minha favorita com o dedo, uma amostra de hematita que peguei no Arizona ano passado, me forço a dizer:

— Olha, desculpa ter te chamado de Veruca Salt. Eu só estava cansada e você estava falando… muito alto.

Eu tenho certeza de que princesas não dão risos de deboche, mas foi esse o som que pareceu sair de Vanessa enquanto ela folheava a revista.

— É incrível que você pense que eu ficaria ofendida por algo que alguém como você diz, Lima.

Eu seguro a rocha com força.

— É Gio.

— Na verdade — diz Vanessa jogando a revista na cama e olhando para mim com um sorriso venenoso —, isso não significa nada pra mim, porque você não será minha colega de quarto por tanto tempo a ponto de o nome pelo qual eu te chamo seja relevante. E isso é uma promessa.

Sua Alteza Real; ginessaOnde histórias criam vida. Descubra agora