A Senhora do Lago

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A superfície do lago brilhava, imperturbável.

Límpido, intocado, sem uma onda sequer.

A menina enfiou os pés na água e orou, como há tempos não fazia:

"Mãe das Águas,

Acolhe minhas lágrimas...

Leva esse sofrimento, eu te peço!

Sou só uma menina...

Mãe e pai já não tenho mais

A única coisa que peço é paz

Te amo, e agradeço

Senhora do Lago!"

E como de costume, pegou seu balde, encheu de água, fez de tudo pra parar de chorar e voltou para casa. A casa do seu dono. Um homem da nobreza, que nobreza só tinha de nome. Raso como uma poça. A pequena Vivian havia lhe sido vendida pelos próprios pais para pagarem todas aquelas taxas e tributos.

Agora ela estava lá, chorosa, magra, sem cor nos olhos. Trabalhava de dia, aprendia a ser moça a noite. Diziam, as mulheres mais velhas da casa, que também foram meninas vendidas como Vivian um dia, que ao fazer 10 anos ele a levaria para a cama. Defloração. Depois disso seria mulher também. Vivian agarrava sua boneca de pano suja e só sabia sentir medo de algo que nem sabia o que era. Ás vezes ela tentava entender isso, o porque do medo. Porém, o fato de imaginar-se dormindo ao lado daquele homem... Calafrios sombrios subiam sua espinha.

De manhã, mais uma vez, foi buscar água com seu baldinho. Tinha um banheiro para limpar.

Tania, uma das mulheres mais novas, a via chorar depois de sua oração, que agora fazia todos os dias. Era estranho sentir pena e ao mesmo tempo desejar que a menina tomasse seu lugar...

O nobre, tirano, a usava todas as noites... Pelos Deuses! Será que ninguém nem nada no mundo poderia ajudar? Seria mesmo justo que pagassem a vida toda por tributos dos pais?

Vivian sabia que Tania era a esposa do momento, e que um dia iria tomar seu lugar. Isso não parecia coisa boa, já que Tania não estava preocupada. Aliás, a menina percebia o alívio da outra conforme os dias passavam.

E passavam rigorosos.

Num dia apanhava da mais velha, mulher amargurada por estar escrava há tantos anos ali. Servindo os soldados bêbados de seu senhor, levando tapas na bunda e sendo chamada de vovó.

No outro dia tinha que lavar as roupas íntimas da casa. Roupas imundas, que sujavam de fezes propositalmente. E ainda riam: é dia de limpeza, né, pequena? Tem que trabalhar bastante se quiser um pedaço de pão até o fim da vida.

Ela não sabia se o pior era trabalhar daquela maneira ou se era ouvir que o homem lhe fazia um favor comprando-a de seus pais...

"Quer voltar pr'aquele chiqueiro fedido, menina? Vai trabalhar!"

As montanhas de roupas eram 3 vezes maior que seu corpinho. E lavar aquela imundície no lago... no lago de sua senhora... Que pecado.

Lá estava novamente, como todas as manhãs, enchendo o balde, orando, chorando. Tania chorava também. Aos poucos veio se aproximando, tentando se conter, mexendo as mãos sem parar. A face delicada, porém judiada, mostrava seus 26 anos sofridos. Os cabelos, que um dia foram louros, cacheados e soltos, agora eram sujos, presos num coque.

- Vivian... perdão, menina... Eu só queria dizer que no começo dói bastante, mas é só fechar os olhos e deixar ele por as mãos onde quiser... assim ele não bate em você. - vendo os olhos curiosos e arregalados da menina, ela continuou, mas agora olhando para o chão, morrendo de vergonha - Eu tentei fugir e até me matar, só que ele sempre dava um jeito de me resgatar e me judiar. Não faça como eu... viva ignorando isso tudo e terá seu pão, até a próxima menina aparecer...

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