Capítulo 1

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             Caminhei até a janela pela terceira vez naquela madrugada. Encarei o céu azul escuro repleto de estrelas brilhando, como se quisessem formar uma cortina brilhante. O dia havia sido cheio, com visitas e mais visitas, presentes e cartas que não pareciam ter fim. Estávamos em plena segunda-feira, mas o ritmo era de uma quinta, quando as pessoas estão se preparando para o início do final de semana. Aquilo tudo, por si só, já me deixou suficientemente exausta; mas nada foi pior que Enzo. Ou sua ausência.

            Ele tem estado ocupado com o novo prédio da Lower em Boston. Nos últimos dois anos e meio, manteve-se viajando de um lado para o outro daqui de Maine até a Califórnia – e também passando várias vezes por Nova Iorque -, onde sede e filial exigiam sua presença quase toda semana. Boston é apenas a algumas horas da nossa cidade (de helicóptero), diminuindo a frequência de sua ausência e também de meus ataques de nervos. Quando se tem um marido, dificilmente as amigas, o pai ou os irmãos conseguem completar o lugar que pertence a aquele que prometeu, diante de Deus, amar, respeitar e cuidar por toda a eternidade.

            Dei um alto bocejo enquanto balançava meu corpo para lá e para cá, sem mudar o ritmo lento, tentando controlar também as batidas de meu coração. Cada dia ficava mais complicado acordar às três e meia da manhã sob o chamado da vozinha de Pearl.

            Sim. Pearl. Só para constar, é um nome de menina.

            Todas as vezes que tenho de mencionar o nome de minha primogênita com Enzo, é preciso muita paciência até que a pessoa entenda que demos o nome "Pérola" à nossa filha e que não, não é "Pêra". Tudo porque fiz a besteira de cair em um de seus atos charmosos em que o preço a se pagar, era ceder o primeiro nome do bebê em meu ventre, fosse menino ou menina. Eu deveria saber que Enzo apenas aposta quando sabe que irá ganhar, por isso, minha doce garotinha acabou tendo esse nome tão incomum e, como ele diz, valioso.

            Pearl nasceu há dois anos e meio, no mês março, aqui em Maine. Naquele dia, eu estava em um almoço com Amy e Lana, que havia acabado de voltar de sua lua-de-mel de quatro meses com Klint (adivinhe por quê? Porque o meu durou um mês e de Amy, dois e meio, logo, Lana se recusou a voltar antes de praticamente o dobro de nós duas) e se gabava do fato de ter passado muito mais tempo que eu aproveitando várias noites de núpcias e ainda assim não voltar grávida. Eu estava pronta para lhe dar uma bela resposta, quando senti minha bolsa estourar. Se estivéssemos em Nova Iorque, as coisas teriam sido menos turbulentas do que realmente aconteceu. Lana e Amy poderiam surtar e chamar uma ambulância com a ajuda de algum funcionário ou cliente que estivesse próximo, eu chegaria ao hospital e daria luz à Pearl. Mas não. Eu decidi voltar para Maine, onde todo mundo conhece absolutamente todo mundo (inclusive nossa árvore genealógica), e o simples fato de Amy gritar "A bolsa de Elle estourou!" foi suficiente para o bairro inteiro se mobilizar e me fazer chegar ao único hospital privado da cidade. Para melhorar, durante todas as dores das contrações que cada vez mais aumentava sua frequência em um menor espaço de tempo, Enzo – que estava em Nova Iorque – mandou que fosse feita minha transferência para Portland, onde uma equipe médica capacitada (não que a de nossa cidadezinha não fosse, mas Enzo apenas se sentia "seguro" se toda a composição da equipe tivesse "Harvard" escrito em seus currículos, por isso, "comprou" a própria equipe para quando Pearl chegasse) estaria me esperando.

            - Mamãe... – ela choramingou, contorcendo-se em meu braço.

            Respirei fundo e a mudei de posição em meu colo. Ela ainda não sabia falar direito, mas poucas palavras eram possíveis distinguir, como "mamãe", "vô", "leite" e "meu". Enzo ainda não se conformou que não faz parte da lista de palavras ditas com frequência e clareza de Pearl, por isso, tenho toda vez de falar que o fato dela dizer que tudo é "dela" a faz praticamente idêntica a ele, que tem uma enorme obsessão por tudo que acredita pertencer a si.

Às Escuras 2 [DEGUSTAÇÃO]Where stories live. Discover now