Lembrar do Passado Para Não Esquecer o Presente

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Se havia algo de fascinante no mundo era o tempo, quase tão perigoso quanto era frágil. Nós o desejamos e tememos. Mais tememos do que o apreciamos. Não corra atrás das contas do tempo, Ela disse. Segure-se a si mesma, Ela disse. Eu escutei. Escutei. Suas memórias são o que há de mais precioso, não se perca de si mesmo. Não deixe o desejo de alcançar o tempo tomar seu passado e te tirar seu presente. Se prenda a você mesmo e deixe as contas.

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A primeira tentativa que fiz de dormir naquela noite foi a mais próxima de se concretizar: o ar frio tocava minha pele como uma película protetora sob o céu escuro pontilhado aleatoriamente, eu já estava há tanto tempo recostada sobre minha mochila que ela se tornara um refugio confortável e aconchegante nos momentos mais solitários. O peso do meu cansaço caiu sobre meus olhos e eu os senti fechar devagar enquanto minha consciência vagava para longe. Um emaranhado difuso de memórias, medos, desejos e pedidos silenciosos se formaram na minha mente e eu jamais saberia se havia sonhado ou não; mas um medo enorme de perder meu passado para sempre me despertou antes que adormecesse e fosse completamente transportada para o inconsciente profundo. Depois veio a segunda tentativa. O ruído das folhas secas sob meu corpo chegava até meu ouvido ampliado em milhares de vezes e o vento soava como o arauto de mau agouro vindo de longe - de um ponto longínquo da minha própria realidade. O silencio ensurdecedor da noite com ecos de ruídos indecifráveis não me deixou relaxar o suficiente e meus olhos sequer pararam fechados. Na terceira tentativa minha cabeça começou a latejar sobre o amontoado improvisado que minha mochila se tornara. Eu levantei o corpo me apoiando sobre o cotovelo, empurrei tudo para longe e deitei de novo sobre a folhagem, essa foi a quarta tentativa de ter uma noite de descanso e foi quando desisti completamente.

O ruído metálico de milhares de contas quicando em vidro, quase tão próximo como se eu pudesse tocá-las, me atingiu e eu permaneci estática procurando a origem do som. Isso era ridículo. As contas de tempo não existiam de verdade. Eu fechei os olhos para me concentrar e senti o toque de uma areia fina e fofa escorrendo entre meus dedos pelo ar a minha volta, ao abrí-los novamente não havia nada. Nada, exceto o som das contas quicando e ecoando de um lado a outro da minha cabeça dolorida. Minhas mãos se enterraram nas folhas secas do chão em busca da segurança garantida por algo real e eu balancei a cabeça de um lado a outro negando o som que estava escutando. Era trapaça. Eles não podiam zombar de mim desse jeito. Alguma coisa estava se perdendo, eu sentia algo precioso sumindo diante de mim. O tempo estava esvaindo-se. Minhas memórias... o Labirinto estava brincando com elas... Ou eu estava perdendo-as, de alguma forma.

Timothy ressonava ao meu lado largado no chão com um movimento suave em seu peito acompanhando sua respiração, alheio as ironias da Deusa menina. Alheio as seduções do tempo. E se a gente ignorasse todos os sons das contas, o que aconteceria? Ela ria porque sabia que éramos tão manipuláveis quanto uma criança poderia ser e aquele era seu jogo, aquele era seu brinquedo preferido - o tempo. Ninguém poderia vencê-la em seus domínios, mas todos os lugares pertenciam a Ela. Ah, a fluidez do tempo... A sensação das contas rolando pelo chão ao redor nos instigava a levantar e correr atrás delas, correr atrás do tempo e perder-se dentro de si. Ela ria baixinho ao meu redor. Eu não deixaria o Labirinto me manipular. Mentira. Eu queria tocá-las. Eu precisava alcançá-las antes que me escapasse àquilo que eu estava prestes a perder. Elas quicavam ao meu lado, eu não podia vê-las mas eram extremamente sonoras. Reais. Havia um plano muito próximo dali no qual elas tinham que ser reais. Ela soltou uma gargalhada gostosa e perturbadoramente tentadora.

Eu me levantei com o coração batendo tão forte que podia sentí-lo contra meu peito, limpei minhas mãos sujas de terra na roupa e encarei a escuridão escutando o silêncio da noite. Então escutei-as cair uma a uma atrás de mim e me virei, nada. Meus olhos percorreram tudo ao redor e uma voz muito sóbria em meu interior insistia em me dizer que aquilo era insano, mas outra parte de mim precisava se agarrar a qualquer vestígio de tempo antes que fosse tarde demais - antes que ele acabasse de escorrer pela fenda de si próprio e eu o perdesse completamente. Diante de mim microparticulas coloridas se misturavam em meio à minha respiração condensada, eu estiquei a mão devagar com os olhos semicerrados para alcançá-las antes que caíssem numa fenda do mundo...

O Labirinto dos DeusesWhere stories live. Discover now