Penas Negras

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Penas Negras

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A lua iluminava o castelo tão bem quanto o sol em uma tarde nublada. As cúpulas douradas das torres refletiam sua luz nos telhados de palha da cidade e ajudavam os trabalhadores a fecharem seus negócios e guardarem as mercadorias para o dia seguinte. Alguns irritavam-se com os corvos que voavam por ali e espantavam-os com cabos de vassoura. Dentro das muralhas de pedra negra do castelo, a rainha esfregava as têmporas, irritada com o choro da filha. A princesa chacoalhava-se nos braços da mãe, esperneava e chorava cada vez mais. Já tinham tentado dar-lhe leite quente, pão banhado em água fervente e chá de camomila. Tentaram leva-la para um passeio, dar-lhe novos brinquedos, embala-la para o sono, banha-la, enfiar o bico do seio de sua ama de leite em sua boca, mas nada a fazia parar de chorar. A lua não chegava a iluminar a coroa da rainha ou a barba branca do rei. Tudo parecia tão sereno observando-se de fora que a velha bruxa riu-se antes de sair da janela e caminhar com a mistura fumegante pelos corredores do castelo.

-Vossa majestade –curvou-se a velha quando chegou ao quarto da rainha. –Trouxe aquilo que pediu.

O quarto da rainha era muito maior do que a casa inteira da velha bruxa. A cama e o colchão de penas de ganso eram maiores que o amontoado de almofadas da velha. Os detalhes dourados nas paredes e nos móveis valiam mais do que a vida inteira da bruxa. A coroa nos cabelos da mulher compraria um reino inteiro. Ou talvez bastassem as madeixas castanhas reais. A bruxa estendeu o líquido quente na direção da mulher com a coroa na cabeça e esta sorriu, satisfeita. Um corvo pousou na janela naquele momento e bicou o vidro. Uma das aias tentou espanta-lo, mas ele não saiu  dali. Ficou em silêncio, observando o bebê chorão e a velha bruxa.

-Espero que isso resolva –disse a rainha, colocando o frasco na boca da criança para faze-la ingerir o líquido. A bruxa esfregou as mãos, contente, e sorriu um sorriso desdentado.

-Não gostaria que essa pequenina fosse... Alguma outra coisa? –Perguntou a bruxa. –Como um gato silêncioso ou uma sombra invisível?

-Oh sim! –exclamou a rainha –E como eu gostaria. Queria que fosse um corvo. Assim, voaria para longe e não choraria mais.

-Um corvo seria ótimo –sorriu a velha. –Perfeito.

Nesse mesmo instante, a pele da pequena princesa começou a enegrecer-se a partir de sua boca. Seus olhos ficaram completamente pretos, a boca alargou-se e os pelos tornaram-se penas. O choro incessante virou um crocitar esganiçado, e a rainha gritou em desespero. As aias correram do recinto e o corvo do lado de fora da janela levantou voo. A bruxa, no entanto, riu ainda mais.

-Venha, princesa –ela estendeu o braço e o corvo lamentador pousou ali. –Vamos comer alguma coisa.

_*_*_*_

Alguns anos mais tarde, um príncipe de cabelos louros carregava cinco coelhos amarrados e pendurados na sela de seu cavalo. Ele cavalgava pela floresta com um certo receio. Ele sabia muito bem que aquele lugar era amaldiçoado. A lua não brilhava ali à quatroze anos, desde que a princesa sumira dos braços da rainha. A floresta estava muito escura, mas assim era perfeito para encontrar os cogumelos que queria. Eles cresciam em abundância naquela parte da floresta e davam um delicioso cozido com coelho ou recheio para patos. Os guardas que cavalgavam com ele eram medrosos de mais para adentrar tão fundo naquele lugar e tinham ficado para trás. O príncipe jurara demorar menos de vinte minutos, mas sentia que já estava ali há horas. Seu velho pai estava doente demais, e ele nunca se perdoaria se voltasse para seu reino sem os cogumelos favoritos de seu rei.

No galho mais alto da árvore mais alta daquele ponto da floresta, um corvo crocitou. O cavalo branco relinchou, irritado, e deu um coice no ar, derrubando um dos coelhos e seu cavaleiro. O príncipe foi de cara na lama seca e arranhou seus braços em uma pedra. O cavalo correu dali, mata a dentro, levando junto os coelhos de sua caçada. Então o corvo riu. Uma risada humana estridente e assutadora. A ave desceu de sua árvore e pousou ao lado do homem.

-Não quis assustar seu cavalo –ela falou.

-O que é você? –o príncipe afastou-se, engatinhando no chão sujo para mais perto da floresta densa.

-Sou uma princesa, amaldiçoada por uma bruxa –ela explicou. –Estou presa nessa ave, mas você pode me ajudar. Se vier comigo, voltarei a ser uma princesa e poderemos nos casar. A lua voltará a brilhar no reino de meus pais e a velha bruxa enfim morrerá.

O príncipe anuiu, pondo-se de pé e arrumando a postura. Ajudar uma princesa e trazer paz a um reino inteiro era muito melhor do que cogumelos. Seu pai ficaria ainda mais feliz quando ele voltasse com uma bela donzela resgatada nos braços. As fronteiras dos dois reinos extinguiriam-se, os dois ficariam mais fortes e ele teria uma bela esposa para mostrar para seus súditos.

-O que tenho que fazer? –ele perguntou.

-Caminhe até a bruxa -o corvo voou e pousou no ombro do príncipe. –Vou voar na frente e arrancar uma pena minha a cada milha. Siga sempre as penas pretas no chão e fique longe das frutas. Eu estarei lá quando você chegar.

E voou para cima, perdendo-se na noite escura do reino amaldiçoado. O príncipe sem cavalo, sem jantar e com o rosto sujo começou a andar para a esquerda. Era difícil ver as penas pretas na grama verde sem a luz do sol ou o brilho da lua. Ele não tinha entendido o que a princesa queria dizer com "fique longe das frutas" ate encontrar uma macieira numa clareira. A fruta no galho mais baixo era tão vermelha e tão brilhante que ele não pode resistir. Não tinha comido nada desde aquela manhã, e uma simples maçã não podia fazer mal. Ele deu uma mordida, depois outra e mais outra. Quando se deu conta, todas as frutas daquela árvore tinham sumido, acabado dentro de seu estômago.

Ele continuou a caminhar, satisfeito, mas obrigou-se a parar mais algumas vezes para provar as laranjas, os morangos, uma melancia e umas tantas amoras pretas. As penas de corvo estenderam-se por quilometros, e ele demorou dias para encontrar a pequena casa da bruxa. Havia uma pilha de penas negras ao lado da porta. O príncipe bateu uma vez e a porta abriu-se sozinha. Estava tudo escuro lá dentro. A noite já caíra sobre si pela terceira vez desde a árvore de maçãs, e a lua ficava cada vez mais fraca no céu. Contudo, ele conseguia ver o corvo lá dentro. A ave estava completamente pelada, sem nenhuma pena preta para continuar a marcar o chão.

-Você veio! –ela comemorou. O príncipe ofegava do cansaço e não conseguiu responder de imediato. Sentia-se pesado, e isso ia além das frutas coloridas que enchiam seus bolsos. Por mais que corvos não pudessem demonstrar emoções faciais, o príncipe conseguiu ver o desapontamento nos olhos da princesa ave.-Comeu as frutas, não foi? Muito bem. Infelizente eu continuarei um corvo, e você ficará para o jantar.

Nesse mesmo instante, velas acenderam-se por toda a casinha, e uma velha que sentava-se em uma pilha de almofadas ao fundo deu uma risada assustadora. Ele tentou correr, mas as frutas pesavam ainda mais, principalmente aquelas digeridas. Ele gemeu e caiu no chão de madeira podre da casa da velha.

-Bom trabalho, princesinha –a desdentada agradeceu. –Esse aqui ficará uma delícia com meus cogumelos.

Naquela noite, a velha e o corvo banquetearam-se em cozido real com cogumelos da floresta amaldiçoada. O corvo permaneceu corvo até as penas tornarem-se brancas como o inverno e a lua nunca mais brilhou na floresta da bruxa. Todas as noites atrás das muralhas negras do castelo daquele pequeno reino, a rainha sorria para seu silêncio, chorava por sua princesa, e dormia em paz.

FIM.


De acordo com a LEI N 9.610 DE FEVEREIRO DE 1998, PLÁGIO É CRIME. 

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