Amizade Espiritual

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Eu tenho certeza de que minha intuição estava aguçada. Meu corpo tremia quando certas coisas aconteciam, me fazendo pensar "Eu já sabia!"... Então por que raios eu não fiz nada?

Eu posso afirmar sem hesitar que tinha fé. E tenho. Sempre que fiz minha magia, fiz já visualizando e acreditando no que eu queria que acontecesse.

Ainda assim, lá estava eu...

Seca.

Nula.

Parecia o vento de outono, que passa levando tudo, secando toda vida em cada canto.

Fria.

Sem jeito.

Olhava para o altar e nada sentia. Mesmo quando me debruçava na janela, para ouvir o canto dos pássaros... nem assim eu sentia aquela fluidez gostosa que é ser bruxa.

Cheguei a sentir dores de cabeça fortíssimas. Quase caí de tontura, de tanto que a intuição gritava em meu ouvido. Mas... mas... eu não entendia.

Como isso é possível? Teria algo de errado comigo?

Teria alguém me amaldiçoado? Arrancado de mim os meus dons? Minha força interior? Minha conexão com a natureza?

Toquei uma das árvores mais belas do meu jardim... ela pulsava vida, eu podia ver. Podia cheirar, ou mesmo saborear, porém, nada eu senti.

Em outros momentos eu poderia até sugar-lhe a vida! Arrancar sua força e usar em um poderoso ritual para curar alguém. Agora? Eu não era nada.

Quantos dias eu chorei.

Pensei em livrar-me de todos os apetrechos mágicos. Meus lindos cristais, meus oráculos certeiros... Que aliás, agora me pareciam apenas um bando de papéis decorados ...

Em alguns dias eu cheguei até a rir de nervoso. Histeria total.

Afastei-me até mesmo das leituras aconchegantes que sempre me traziam novas descobertas acerca do antigo mundo, das velhas crenças, de deuses ancestrais...

"Respire fundo", diziam, "É apenas uma fase".

Eu não tinha problemas em casa. Estava trabalhando, vivendo.

Desgostei, abandonei.

Coloquei tudo numa caixa e me fechei.

Eu não sei como explicar, mas meu coração estava chorando. Lágrimas de fogo, pedindo que eu não desistisse.

O que eu poderia fazer?

Apenas faço magia com prazer!

Tentei banir essa má influência, tentei me benzer.

Entra e sai alguém "Que lugar gostoso! Amo ir na sua casa!"... Só eu não me sinto em casa por lá.

Pareço um organismo estranho, abandonado numa dimensão diferente. Tudo em preto e branco, e a mesma música sem ritmo também.

Então eu escrevi. Desabafei. Sentei, esperei.

Fiz meu último feitiço.

Sem acender uma vela ou um incenso, somente as palavras usei:

"Se ainda bruxa eu for

Que venha um sinal repleto de amor"

Botei as duas mãos sobre o peito, deixei as lágrimas caírem ao vento...

Senti um tumulto dentro de mim. Gostaria que fosse sempre assim. Confesso que era difícil de entender, talvez porque assim era para ser.

Tomei um banho quente.

Minha cabeça estava fervente... E precisava por as ideias no lugar, sem um norte para me guiar. Oh, vida, por que tanto sofrimento?

...

Sem pretensão de nada, apenas deitei em minha cama. Enfiei um livro na cara.

Percebi o celular tocar. Insistentemente, parecia que nunca ia parar... Eram mensagens de uma amiga. Uma meio sumida.

Dizia que sonhou comigo.

Que em meus olhos havia uma venda.

Eu não podia tirar, apenas dar as mãos a alguma das amigas, e seguir pela floresta negra.

No sonho, uma Senhora que mexia um caldeirão dizia assim:

"Traga minha menina para mim"

Ela parecia chateada, mas não irritada.

"Menina estúpida, como vai sair dessa situação estapafúrdia?"

Batia sua colher no caldeirão, com força, falando alto com seu vozeirão:

"Agora vá, a traga para mim. Ela sabe meu nome. Estarei com ela até o fim."

Quando li a última frase, não sei explicar, acho que entrei num transe....

Num minuto eu senti o cinza ir... E um leve colorido vir. Eu sabia. Sim, eu sabia sim.

Vovó, perdoe-me.


Liguei para minha amiga e agradeci. Expliquei o feitiço que lancei e a resposta que dela recebi. Poderia dizer ser coincidência, contudo, seria apenas mais uma mentira.

Eu que me afastei. Eu me isolei. Certamente que perdi a força da nossa Teia. Teia de magia, de força, de cumplicidade. Tenho meus deveres, minhas obrigações, mas jamais posso por meu conhecimento espiritual em segundo plano.

Eu perdi um ano.

Bastasse um pouco de dedicação, e evitaria toda essa situação. Vovó sempre falou "Não esqueça quem do teu lado ficou".

Estive sem forças nos últimos meses. E o que fiz, além de pesar e pesar? Por que não pedi ajuda? Fui tola, fui insegura.

Bastava um pedido. Sincero, de coração. E algum espírito amigo ouviria minha oração.

Mas tive minha lição: não tem porque esperar não. Contarei com as irmãs de fé, e assim nos manteremos todas de pé.

Nossa corrente será forte, cada elo um suporte. Atravessaremos gerações, sem lamentações.

Heya, Irmãs! Somos fortes como nossas anciãs!


Heya!

...

Dedico este conto a todas as irmãs e irmãos de fé, que sem querer ouviram minhas orações... que trouxeram tantos sinais que pedi. Nunca mais me senti assim... Mas esse conto precisava ter voz. Espero que alcance alguém... alguém que precise de nós.

Somos uma teia. Uma corrente.

Não deixemos as fogueiras serem mais fortes que nós.


GrimórioOnde as histórias ganham vida. Descobre agora