Rotina

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Acordou às 6 em ponto, sem precisar de despertador. O hábito construído nos últimos 45 anos não era quebrado nem mesmo nos fins de semana. Naquela quarta feira, a dor da artrite se fazia presente para lembrar que a vida ainda não tinha acabado.

Respirou fundo, se virou de lado e sentou na cama, procurando os chinelos com os pés cobertos pelas meias, enquanto buscava na cabeça a motivação para seguir com o dia. Encontrou os dois ao mesmo tempo e sorriu, como sorria todos os dias.

Se levantou e caminhou com seu passo lento e constante, com o cuidado típico dos que conhecem a fragilidade do corpo, iniciando o ritual diário de suas abluções matinais. Uma hora depois já estava na mesa da cozinha, posta para dois e servida somente em um dos pratos, comia com calma e precisão para evitar que os farelos sujassem o chão.

Os gastos médicos consumiam quase toda a renda familiar, não era possível pagar por serviço doméstico sem comprometer o tratamento. As prioridades sempre tinham sido claras e agora o almoço era consumido na padaria da esquina, pago mensalmente. Não valia a pena cozinhar refeições individuais.

Com a louça limpa, passou na varanda e colheu uma flor, trancou o apartamento e caminhou até a parada, sorrindo e cumprimentando como quem não pensa em problemas. Percebia, vez ou outra, a pena que nunca fez questão de receber no olho de quem respondia e perdoava com o coração aberto a arrogância da juventude.

Esperou o ônibus, que atrasou pouco, aceitou o acento que hoje lhe ofereceram e se felicitou por ser um dia de sorte. Quando chegou no hospital, seguiu ainda a rotina, respondendo aos bom dias e seguindo para o quarto onde seu amor ainda dormia.

Ao entrar, ajustou o lençol, deu um beijo em sua testa, trocou a flor do vaso e se acomodou na poltrona ao lado da cama, apanhando o livro da cabeceira para seguir para o próximo capítulo em sua voz calma, contando a história, que iniciou sua história quando resolveu ficar até o final do turno da livraria, há quase 50 anos.

Encerrado o horário de visitas, um novo beijo no rosto amado e a promessa de voltar no dia seguinte. Ao sair, a rotina foi quebrada para responder à pergunta de uma residente, que não entendia como era possível se chegar e sair tão feliz de um hospital todos os dias.

"Amor", respondera, "daqueles antigos, verdadeiros."

Com um último sorriso tranquilo, saiu e voltou pra casa para cuidar de tudo, para garantir que estaria perfeito quando voltasse a ser um lar.

No dia seguinte, enfermeiros e médicas aflitas aguardavam sua chegada, as complicações da madrugada haviam sido fatais, ninguém queria ser o portador das más notícias. Ao ligarem para o prédio, descobriram a necessidade de mandar com urgência uma ambulância, que chegou junto do chaveiro.

Nos atestados de óbito as horas da morte apresentavam 10 minutos de diferença, mas os sorrisos nos corpos eram idênticos.

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