Capítulo 12 - O sonho

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Certa noite, Nóbrega acordou assustado. Desde que começaram a expedição a Piratininga, o padre não dormia bem e muitas vezes passava a noite em claro, orando.

Desta vez sonhara com o baú que haviam trazido da mata. Já se ia passar um mês que se esqueceram dele no canto da oca. De tanta ocupação com a educação dos gentios, nunca olharam o que lá estava guardado.

No sonho, Nóbrega abria o baú e via que dentro dele estava nu, de pernas dobradas e inerte o órfão Antonio. Morto. Morto. Uma criança sem vida lhe causava mais dor que surpresa.

O padre então chorou sobre o corpo do menino. As lágrimas caíam sem parar, molhando o rosto de um órfão. Lágrimas de luto, lágrimas de fracasso.

Enquanto tentava parar de chorar, viu que não era mais o corpo do menino e sim ele mesmo que estava dentro do baú, sem vida. É tomado por um espírito de terror e desespero.

Ele se viu, morto, abrir os olhos, levantar do baú, com dentes podres, uma pele pálida e um gesto de sonâmbulo. Ele era um monstro! Um monstro que despertou cheio de fome, pronto para dizimar.

O medo corroeu suas veias. O coração disparado parecia à beira de um ataque.

Aquela dor no peito que lhe despertou.

Foi só um pesadelo. Ele já estava acordado. Tinha que abrir os olhos. Tinha que ter coragem de abrir os olhos.

Após uma ave-maria, abre ambos os olhos. Vê o teto da oca, ouve o coachar de algum sapo. Só precisava verificar o baú para se tranquilizar por completo. Lavou o suor com água de uma jarra, tentando dissipar qualquer lembrança do sonho. Olhou para o outro lado e viu Anchieta dormindo. O jovem padre balbuciava alguns gemidos, que logo Nóbrega identificou serem de prazer e gozo.

Ninguém mais dormia ou entrava naquela oca, só os dois padres. Quase toda a aldeia, naquela noite, devido ao calor, dormia embaixo das estrelas. As ocas tinham espaço suficiente para abrigar várias famílias de índios, contendo redes penduradas, mas Nóbrega e Anchieta preferiam o chão. Além dos padres, também estavam dormindo em ocas os colonos e suas concubinas, que eram as mulheres da aldeia. As ocas costumam ser espaçosas, por isso Nóbrega se lembrava de terem deixado o baú por ali.

Realmente, o baú misterioso estava próximo da parede de palha. Como no sonho. Estranhamente, havia uma grande diferença: o baú se encontrava aberto.

O padre ponderou se devia se aproximar do baú, já que o medo não evaporara de todo e seu coração voltava a acelerar.

Ouviu gritos vindo de fora.

Pelo buraco da porta, Nóbrega viu alguns guerreiros correndo. Alguém havia destroçado o companheiro ao lado. Diante dele, um índio se metia a comer o pescoço de outro índio. O padre voltou a encarar o baú. Não era outro sonho.

- O que está acontecendo? - é a voz de Anchieta, entre embriagado e assustado. O jovem padre não tem tempo de ouvir nenhuma resposta. Um homem morto passa pela porta da oca e, com as mãos a frente, num andar sonâmbulo, se atira sobre ele.

Nóbrega não olha para trás. Tinha que assinar o seu destino sem titubear. Entra no baú e ali se tranca.

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