Parte I

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Capítulo 1.

O mar bate no casco do navio com violência. As janelas da minha cabine são açoitadas pela chuva.

É a minha primeira noite no Vingança.

As estrelas brilham no céu e o convés parece encharcado. O balanço do navio já fez vários tripulantes botarem as tripas pra fora desde esta manhã.

O caminho até Arnlev é longo e demorado. Talvez leve vários meses, afinal precisaremos passar em Mondian para pegar o pequeno príncipe, precisaremos desviar o curso para não sermos interceptados e faremos paradas nas Ilhas Tamarruchas para nos abastecer.

Amanhã pela manhã definiremos os postos para a organização da tripulação. Não acho que eu serei capitã, não sei dirigir um navio. Talvez esse posto seja de Lince, e não tenho objeções. Apesar disso, já me acomodei na cabine do capitão.

Caminho lentamente até a cama na parede. Assim que me deito, uma parede metalica se ergue a minha esquerda para que eu não caia com o balanço do barco. A sensação de deitar num colchão é estranha.

Fecho a mão hesitante bem perto do interruptor. Se eu desligar a luz é como se tudo fosse desaparecer.

E eu fosse acordar de um pesadelo para o outro.

Recolho a mão sobre o peito e me contento a olhar para o teto de um tom sóbrio de bege. Suspiro uma, duas, três vezes, eu posso fazer isso. Tomo coragem.

Desligo a luz rapidamente.

Os flashs passam como um filme. Lembranças horríveis, talvez reais. Noites frias e rígidas, o tremor nos ossos, o chão duro, pesadelos horríveis. Fadiga. Vejo uma pequena janelinha no teto, amanhecendo e escurecendo, dia e noite passando um após o outro como se eu nunca fosse sair dali. Fantasmas nos cantos. Mortos nas encostas.

Sinto uma pontada de dor e só então as lembranças param. Estou do outro lado do quarto, encolhida na porta logo abaixo da fechadura de roleta. Há uma gotinha de sangue correndo pelo meu braço com pressa. Estou me abraçando, as unhas fincadas na pele.

Engulo em seco e me forço a respirar. A luz já está ligada novamente.

Está tudo bem.

Eu estou viva. Estou aqui. Estou respirando.

Esfrego os braços me livrando do sangue, visto a capa de chuva amarela que me deram mais cedo e ponho o capuz. Quando saio da cabine tenho que me segurar na porta, o vento carrega a chuva como um tsunami vindo em direção ao meu rosto.

Desço as escadas para o convés dos passageiros, as acomodações estão dispostas uma ao lado da outra e aqui em baixo sequer é possível perceber o mundo afundando lá em cima.

Entro sorrateiramente na penúltima cabine. É simples e menor que a minha. Tem uma cama pequena na parede e seis gavetas abaixo desta, um criado mudo com uma vela acesa e uma janela com vista para a imensidão do mar. Lince dorme profundamente, com o rosto virado para a parede. Me esgueiro até a cama dela, tem espaço o suficiente para mais uma.

Antes que eu deite uma faca se finca no colchão me fazendo dar um salto.

Lince tira a faca do colchão, agora rasgado, olhando pra mim e suspira. - Me assustou. - ela diz sonolenta como se não houvesse quase me esfaqueado.

- Jura? Você também me assustou! - resmungo.

Ela me olha meio cansada, meio debochada, um tanto perdida e sem saber o que está acontecendo. Pega sua faca quase com carinho, vira para o lado me dando espaço na cama e fecha os olhos.

As Crônicas de Rayrah Scarlett - Esperança Em Arnlev [RETIRADA EM 25/08/22]Onde histórias criam vida. Descubra agora