queime carrie, a estranha

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NA NOITE EM QUE ELIZE PRESCOTT NÃO MORREU

Elize abriu os olhos e respirou o mais fundo que pôde, sentindo um movimento estranho impulsionar o seu corpo. Por um momento ficou perdida, mas logo retomou todos os sentidos e percebeu que estava boiando em cima de um líquido vermelho e pegajoso de cheiro horrível, qual poderia ser a mistura de mofo e sangue.

Acima de sua cabeça havia um teto escuro marcado por teias de arranhas e telhas quebradas. Mesmo que nunca tivesse entrado naquele local especifico, ela viu pela pouca iluminação que aquela era a área proibida da fábrica de seu pai, onde o triturador de ossos ficava escondido do resto dos funcionários por ser perigoso demais.

Com muito frio Elize se levantou, sentindo o sangue de todos aqueles animais triturados a cobrir dos pés à cintura. Olhou para cima, onde a grande lata cheia de restos oferecia uma saída, e nadou no sangue até estar perto o suficiente para conseguir escalar com as unhas recém feitas crispando no ferrugem.

Pulou para o chão sentindo que suas pernas estavam dormentes, equilibrando-se nos saltos vermelhos já não tão escandalosos depois daquele drama mórbido cheio de clichês. Seu corpo inteiro doía quando ela arrumou a postura e olhou para cima, vendo as hélices do triturador sujas de vermelho.

      Era o seu sangue, com certeza.

      E o de alguns porcos também.

Quando saiu da fábrica ainda era noite, e pelo relógio enorme acima da entrada principal Elize percebeu que havia se passado apenas algumas horas desde o momento em que ela fugira da festa da família Prescott com Scott J. Adams ao seu lado.

Quem diria que no inferno o tempo passasse tão devagar. Elize se lembrava de ter ficado pelo menos dois dias lá.

Uma sensação estranha fez Elize parar no meio do caminho, e ela trocou a avenida que a levaria para a mansão Prescott pela trilha atrás da fábrica, que a levaria para a floresta. Ela não podia ignorar o cheiro familiar de fogo consumindo matéria, o mesmo cheiro que a perseguiu durante todo o tempo que ficara no inferno.

Seguindo o cheiro, Elize adentrou a floresta, encontrando Scott J. Adams depois de uma caminhada cansativa demais para os seus saltos vermelhos e os seus ossos recém triturados.

Ele estava parado em frente a uma fogueira, praticamente nu, com as mãos trêmulas e ensanguentadas ao lado do corpo, os olhos fechados. Respirava tão alto que o som do fogo crepitando acabou sendo ofuscado, e durante alguns segundos Prescott ficou ali, o observando em silêncio.

Elize não sabia exatamente o que fazer, mesmo que no fundo soubesse o que queria. Era um momento delicado onde um animal observava uma presa, os instintos aguçados sem peso na consciência, cheia de um sentimento estranho que não poderia ser facilmente identificado. Então ela se aproximou dele, cautelosa, e reparou pelas marcas em suas costas que aquela noite sairia muito cara para os dois: Scott ainda tinha as marcas das unhas de Elize na pele, escorrendo sangue.

Prescott esticou os dedos para tocá-lo, pensando que naquele momento poderia matar ou amar Scott tão intensamente que nenhum dos dois jamais conseguiria diferenciar o que era ódio e o que era paixão. Estava escuro, havia uma fogueira e Elize bem sabia a quantidade de álcool que Scott havia ingerido naquela noite. Seria uma ótima cena de crime, repleta de satisfação pessoal para o seu lado dramático e sua sede de vingança melodramática.

Mas apesar de tudo, Elize olhou para as mãos com as unhas pintadas de vermelho e recolheu os dedos. Não seria daquele jeito que ela se vingaria de Scott por ter tirado a sua vida, por ter partido o seu coração em pedaços que nem o inferno conseguiu juntar.

Elize queria que ele pagasse aos poucos, com a própria alma. Ela o infernizaria tanto que Scott um dia pediria para que o Diabo levasse a sua alma, e, bem, ele não faria isso. Não enquanto Elize estivesse se divertindo; não enquanto ela estivesse fazendo com que seu assassino pagasse por tudo o que havia tirado dela naquela maldita noite de festa na residência Prescott.

Elize se afastou dele silenciosamente, sumindo no meio das árvores enquanto Scott ainda observava a fogueira. Ela desceu a rua principal do centro da cidade sentindo o vestido colar em seu corpo, esfriando junto com a noite a cada passo que ela dava. Passou pelas lojas fechadas, pelo mercado de onde Scott havia roubado o carrinho para carregar o seu corpo e só parou ao finalmente alcançar a mansão dos Prescott.

Quando Elize entrou os funcionários ainda arrumavam tudo o que havia sido desestruturado por causa da festa de aniversário dela, mas nenhum a notou subindo as escadas para o segundo andar, onde o acesso tinha sido proibido.

Não ter sido notada foi algo bom, porque Elize não queria que ninguém a visse naquele estado. Ela precisava de um banho para tirar a crosta de sangue seco que agora endurecia os seus cabelos ruivos sempre tão sedosos. Não podia passar nem mais um minuto com aquela aparência horrível, como um personagem de um filme de terror antigo.

Ela seguiu direto para o quarto, mas sua felicidade não durou muito. Quando estava prestes a abrir a porta uma garotinha apareceu no fim do corredor e correu até ela, segurando um esfregão.

— Empregados não deveriam ter filhas — Elize rosnou.

Nunca gostou de crianças, principalmente quando em sua casa. A garotinha, entretanto, não notou a aversão de Elize à sua existência e se aproximou até estar ao lado dela, cutucando sua coxa esquerda com a ponta do dedo indicador:

— Isso é sangue? — perguntou.

— Sim. Da última criança que tocou em mim.

A garotinha não se assustou, mas a olhou intrigada. O esfregão em suas mãos era grande o suficiente para tombar para o lado como se estivesse prestes a cair e levar a criança junto.

— Por que você está cheia de sangue? É para o Halloween?

Elize passou a mão pelo rosto dela, deixando uma marca vermelha na pele clara. Foi quando sentiu algo estranho, algo que ela não estava sentindo até aquele momento: fome. E um pouco de euforia também.

A barriga da garotinha roncou junto com a de Elize.

— Se você quiser, posso te mergulhar em sangue também — ela disse, sorrindo. — Então nós duas ficaremos com fantasias iguais!

A menina sorriu de uma maneira animada e fez que sim com a cabeça, entrando no quarto de Elize quando ela abriu a porta e lhe deu passagem.

Enquanto girava a chave na fechadura, Elize observou o movimento de suas mãos e viu que as unhas pintadas de vermelho haviam crescido alguns centímetros, tornando-se pontudas e mais duras que o normal.

A menina parada no meio do quarto deixou o esfregão cair no chão quando Elize se virou para ela:

— O que aconteceu com os seus olhos? — perguntou, um pouco assustada.

Elize encarou o seu reflexo na janela atrás dela, e seus olhos estavam diferentes também: vermelhos. Brilhantes como as chamas que Elize havia visto no inferno.

Ela sorriu e respondeu:

— Eles estão felizes em te ver, docinho.

...
CONTINUA

N/A: É, talvez Scott deva se preocupar com Elize

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N/A: É, talvez Scott deva se preocupar com Elize. E muito.
Vocês estão com medo dela?

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