Longe Demais

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Andrea sorveu seu drink com os olhos presos na pista de dança. Mike, que fora com ela para a Empire, estava terminando de dispensar um garoto. Os dois estavam precisando relaxar, sair, ver gente estranha e beber alguma coisa.

Acaso passassem pelo pior momento de suas existências emocionais, pelo menos tinham um ao outro, para confortar.

-- Sabe o que é o mais irônico disso tudo? -- perguntou o garoto.

-- Hum?

-- Apesar de toda aquela aparente frieza, a mais romântica de todos nós sempre foi a Lena. Oras, manter-se presa a uma promessa de amor adolescente!

-- Pois é... -- disse Andrea, desgostosa.

-- Estou chocadíssimo -- a amiga contara a ele tudo o que tinha acontecido. -- Mas pelo menos isso explica tudo.

-- É, só que não me conforta.

-- Temos de aceitar a realidade, And... Somos dois azarados no amor.

-- Amor... Está aí uma coisinha da qual eu quero passar longe por alguns anos.

-- Você vai realmente desistir da Lena?

-- E que remédio eu tenho?

-- Você não disse que ela ligou?

-- De que adianta? Isso só tortura nós duas ainda mais. Ela ligou hoje de novo, não atendi.

-- And!

-- Não adianta, Mike. Enquanto ela estiver com essa múmia dessa Helena na cabeça, não tem como... Não... Ah, merda! Quero morrer!

Mike deixou a cadeira que ocupava e abraçou a amiga.

-- Às vezes parece mesmo que o amor só foi feito para machucar -- disse ele.

-- Eu não conheço um exemplo, sabe? Um mísero exemplo bom de amor. O único que eu tinha, era você e Winn.

Mike baixou os olhos, tristonho.

-- E agora aí está você com o coração partido. E ele, com a cara de tacho. Abrir mão de um namoro como o que vocês tinham em troca de... De... Desculpa, eu não deveria estar falando isso.

-- Tudo bem. Eu sei que ele finalmente ficou com o Santiago e viu que era só tesão. Ele mesmo me contou.

-- O Winn?

-- Não, o Santiago.

-- Pois então... E ele está sofrendo também, agora. Claro, ele até fez por merecer, mas mesmo assim, sofre. Você sofre. Eu sofro... E eu fiz a Kara sofrer... Cadê as pessoas que deveriam ser felizes?

-- Devem morar em outro lugar... -- disse Mike, com ar distante.

Os dois se distraíram com outro assunto por algum tempo. Passava de duas da manhã quando o garoto avistou um rosto conhecido:

-- Ka!

Ela ia abrindo um sorriso quando notou Andrea sentada à mesma mesa. Por um segundo, hesitou, e então caminhou na direção dos dois.

-- Oi, gente.

-- Oi, Kara -- o sorriso de Andrea era tão sincero, que carregava grande culpa.

-- Senta aqui com a gente -- convidou Mike.

Ela pensou em negar, mas estava cansada. Tinha ido até a boate porque sua cabeça estava cheia demais, precisava de distração. Um dia inteiro de reflexão não tinha lançado qualquer luz sobre o que ouvira de Helena na outra noite.

Por outro lado, queria ter se preparado melhor. Deixar Andrea vê-la com aquele ar cansado e derrotado não era exatamente o tipo de reencontro que faria seu orgulho próprio voltar ao normal. Ainda doía. Ainda era extremamente difícil ficar perto da ex-namorada sem sentir que seu coração era esmagado.

-- Ah, aí está você! -- ouviu uma voz conhecida um segundo antes do seu corpo ser envolvido num abraço possessivo.

-- Nossa, Carina?! -- estranhou Mike.

Kara reagiu mais por instinto do que conscientemente. Entendeu o plano de Carina na mesma hora, e permitiu um beijo leve, nos lábios. Com a visão periférica, viu a boca de Andrea se abrir debilmente.

-- Desculpa, linda -- disse Kara. -- Vim dar um abraço nesses dois. Sentiu minha falta?

Carina gargalhou -- intimamente, claro.

-- Apesar de ter passado o dia todo na sua cama, lindinha, ainda não foi o suficiente.

Abraçaram-se demoradamente. Ao ouvido da outra, Kara sussurrou:

-- Que pensa que está fazendo?

-- Nada que você não tenha adorado, pelo visto... -- a resposta foi igualmente sussurrada.

Acabaram por se sentar na mesma mesa que Mike e Andrea, que, aliás, ficara muda e estática.

-- And, querida, como vai o mestrado? -- perguntou Carina, sem desgrudar de Kara.

-- Muito bem -- ela respondeu, quase sem mover os lábios.

-- Tá tudo bem com você? Estou te achando meio pálida...

Kara a beliscou, imperceptivelmente.

-- Tudo ótimo -- ela se levantou. -- Tão ótimo, que vou dar uma volta. Você vem, Mike?

Ele trocou um olhar nervoso com Kara, e seguiu a outra amiga. Carina não fez questão de disfarçar sua gargalhada, dessa vez plenamente audível.

-- Será que foi alguma coisa que eu disse? -- brincou.

-- Você é completamente insana... Cada vez tenho mais certeza disso -- comentou Kara.

Carina riu de novo.

-- Cheguei na hora certa? -- perguntou ela.

-- Nossa, um segundo a mais ou um segundo a menos, não teria dado certo. Até parece que planejamos.

-- A gente se entende só pelo olhar, gatinha... -- piscou o olho. -- Mas então, já tinha topado com ela desde o...

-- Primeira vez.

-- Puxa. Chato.

-- Pra caramba.

-- Quer beber alguma coisa?

-- Aceito.

Por quase uma hora, as duas ficaram conversando. Conforme o previsto, nem Mike e muito menos Andrea voltaram para aquela mesa. Elas também não os viram quando foram dar uma volta e logo concluíram que os dois haviam partido. Kara contou à Carina sobre o infortúnio de Mike e a amiga lamentou.

Ela, por sua vez, contou que passara a última semana com amigos fora da cidade, e que tinha acabado de voltar. Kara resumiu seus últimos dias limitando os comentários à faculdade.

-- Bem -- disse Kara, depois de algum tempo. -- Você deveria ter planos para essa noite e eu devo estar atrapalhando...

-- Você atrapalhando? Jamais, loirinha.

Kara riu, completamente sem graça. Sentiu a mão de Carina tocando seu rosto e teve certeza de que sua pele estava completamente tomada de rubor.

-- Sei que estávamos fingindo por conta da sua ex, mas... Eu teria adorado se fosse verdade...

-- Carina...

-- Eu acho um pecado você ter essa carinha de quem precisa de cuidados, sabe? Isso é... -- aproximou-se dos lábios dela. -- Absurdamente... -- aproximou-se mais. -- Enlouquecedoramente... E... Deliciosamente... -- fechou os olhos, inclinando o rosto. -- Irresistível.

Kara sentiu seu coração crescer dentro do peito. Entregou-se ao beijo e logo suas mãos vasculhavam o corpo de Carina, ora empurrando, ora puxando pra perto. Se queria aquele beijo, não sabia ao certo. Mas seu corpo agradeceu de imediato.

As lembranças sensoriais da noite que se entregara à Carina lhe tomaram de assalto, fazendo seu sangue ferver. Em dois minutos, só queria encontrar um jeito de deixar a Empire o mais rápido possível, pensamento que Carina pareceu ler em seus olhos, seus gestos, sua urgência.

-- Que tal se formos para a sua casa, dessa vez? -- propôs Carina.

-- Eu só prefiro a sua porque é mais perto -- disse Kara, enquanto beijava a outra.

-- Hmm... Parece que eu tenho o dom de te deixar com pressa, hein, gostosa? -- provocou.

Kara a empurrou contra a parede, pelos ombros.

-- Se continuar me provocando desse jeito... -- desfez a falsa expressão raivosa e sussurrou o restante da frase. -- Eu como você aqui mesmo...

Carina gemeu contra os lábios dela. Graças à música alta, ninguém além de Kara foi capaz de ouvir.

-- Não... -- apanhou Kara pela mão. -- Casa... Cama... Eu quero você inteira... 

Deram sorte da fila do caixa estar pequena. Pagaram as comandas e entraram num táxi. Se o motorista se importou com o fato de elas terem começado a transa ainda no banco de trás do carro dele, pelo menos não disse nada.

* * *

Mike abriu a porta e Andrea entrou no apartamento dele com pressa. Tinham combinado de dormir os dois na casa do estudante, para conversarem mais um pouco, e na verdade, porque precisavam de companhia.

-- Aquela VACA! -- disse Andrea, furiosa.

Mike se limitou a rir, enquanto jogava o próprio corpo no sofá.

-- Aquela vadia! Aquela mulherzinha de quinta! Aquela PIRANHA! -- continuou a garota, andando de um lado para o outro.

-- Ah, And, esquece isso... -- disse Mike.

-- Como ela tem coragem???

-- And, as duas são solteiras, eu não sei por que você está implicando...

-- Porque a Carina é uma vagabunda! É uma cadela! Ela sempre arranja um jeito de fazer isso comigo. Passou anos se esfregando com a Lena na minha cara, e agora resolveu pegar a Kara, só pra me irritar!

-- Ou talvez porque ela ache a Kara atraente -- comentou Mike.

-- Até parece, Mike. Tá na cara que foi pra me provocar.

-- Bom, e pelo visto deu muito certo, né? Não acha que pra quem não conseguia sentir nada pela Ka você está dando um piti astronômico de ciúmes retardado?

-- Ciúmes?

-- Ciúmes, queridinha.

Andrea finalmente se acalmou, para poder pensar sobre aquilo.

-- Não posso estar com ciúmes da Kara -- disse ela, depois de algum tempo.

-- Está com ciúmes da Carina, por acaso?

Mike teve de desviar o rosto da almofada que Andrea jogou na direção dele.

-- Ridículo. Nem que ela fosse a última mulher da Terra.

-- Sei. Então é ciúmes da Kara, minha amiga. O que pode ser um ótimo sinal.

-- Como assim?

-- Vai dizer que você não viu a carinha que ela fez quando a viu?

Andrea baixou os olhos.

-- Procurei não olhar. Não sabia o que dizer.

-- Pois é. A Kara é tão legal... E vocês faziam um casal super fofo. Achei honesto você tentar com a Lena, mas se não deu certo... -- ele abriu os braços.

-- Ah, que legal... Agora eu vou passar a noite inteira imaginando aquelas duas... -- virou os olhos. -- Saco!

-- Melhor irmos dormir de uma vez, e você esquece isso -- Mike se aproximou para dar um abraço na amiga.

Andrea assentiu, mas não conseguiu esquecer o assunto nas muitas horas seguintes, pois sua insônia voltara com toda a força.

* * *

Em que ponto exatamente uma pessoa é capaz de se dar conta de que foi longe demais?

Kara se perguntava sobre isso enquanto deixava o aeroporto. Estava tonta e confusa com o enorme fluxo de pessoas, com os anunciantes praticamente a obrigando a tomar um táxi, com os painéis da parede, com suas próprias angústias.

Tinha acordado nos braços de Carina. Lembrava de cada detalhe da madrugada tórrida, exceto do exato segundo em que teve a maldita ideia que a colocara dentro de um avião.

Fingira um certo desagrado que depois de alguma insistência, revelou à Carina ser fruto de um atraso. Inventou uma desculpa sobre uma atividade da faculdade, que extraordinariamente ocorreria em NY, e que já não teria mais tempo de tomar um ônibus. Compadecida, Carina sugerira embarcá-la na ponte aérea, por sua conta.

Para sorte de Kara, ela não fizera muitas perguntas. Parecia se sentir culpada, porque realmente fora ela quem tomara a iniciativa. E supostamente fora a noite que passaram juntas que tinha atrapalhado a agenda de Kara.

Se conseguisse lidar com a culpa por ter mentido descaradamente, restava à moça um único problema: pagar a viagem de volta. Não tinha reservas financeiras e com o mês acabando, aquilo era mais do que uma extravagância. Era insanidade.

Não conseguia precisar que tipo de força a movera daquela maneira. No dia anterior, depois da conversa com Helena, vasculhara a pasta do caso Simmons e fizera uma pequena lista de pessoas ligadas à vítima.


Uma delas, acreditava a estagiária, bem poderia ser o tal Daniel M., o misterioso agiota que tinha mudado o destino da indiciada.

Sua experiência quase nula naquele tipo de atividade a impeliu a recorrer ao mais óbvio. Iria até a delegacia onde o inquérito fora montado e solicitaria a ficha criminal de todos os nomes que pusera em sua lista.

Se aquilo era permitido por lei, ou não, Kara não sabia. Nem tivera tempo de averiguar. Mas também não poderia ter esperado. A oportunidade perfeita de viajar de graça não apareceria de novo tão cedo.

E ela ficou pensando que se não tivesse as contas tão apertadas, seria uma “detetive amadora” bem mais eficiente.

Não foi difícil pedir informação. Agradeceu por ser um começo de tarde, porque se fosse à noite, tinha certeza de que se sentiria muito mais exposta, desprotegida.

De tão nervosa que estava, não conseguiu prestar atenção na cidade. Cada ruído mais agudo que o ônibus urbano fazia, ela já temia ser o começo de um tiroteio. Das coisas bonitas que falavam sobre o lugar, ela não viu nada. Estranhamente só conseguia pensar nas más notícias, na péssima fama, no perigo que cercava tudo e todos.

“Vamos lá, Kara, deixe de ser jeca e pare de tremer” disse a si mesma, tentando se convencer. Mas sabia que a sensação de insegurança demoraria a passar, como tinha demorado depois que ela se mudou para NC.

O que ela tinha era medo do desconhecido, e isso era uma coisa que só seria superada quando não se sentisse mais uma estranha. E não seria naquele dia. Não seria fazendo o que ela tinha de fazer.

Nem em mil anos uma garota de vinte anos e rosto angelical entrando em uma delegacia com os olhos arregalados de medo seria algo que não despertaria, no mínimo, olhares. Ela procurou fingir que não se importava. À esquerda de quem entrava havia uma espécie de guichê com um vidro blindado. As demais portas estavam todas fechadas e seis das doze cadeiras estavam ocupadas.

“Melhor esperar” pensou a garota, que foi se sentar, pousando a mochila no colo. A próxima pessoa a entrar andou até o balcão e apanhou um pequeno retângulo de papelão.

Uma senha!

Discretamente, Kara deixou sua cadeira e apanhou uma senha para si também. Ficou ouvindo aquela sucessão de números sendo chamados, e pessoas se debruçando próximas do vidro blindado para se queixarem de alguma coisa.

Quatro desafortunados haviam perdido os documentos, uma mulher buscava informações sobre um cão desaparecido e o último homem a ser atendido antes de Kara queria registrar uma ocorrência relativa a um acidente de trânsito.

Rotina...

-- Aaaam... Oi... Eu... Eu sou... -- gaguejou Kara, quando enfim foi chamada.

-- Perda de carteira? -- a funcionária tentou adiantar o seu lado.

-- Não, não. Homicídio.

-- Oh... Ligou para a emergência?

Kara demorou a entender o engano.

-- Certo, de novo, ok? Vim buscar informações sobre um inquérito de homicídio.

-- Sabe a data? O local? O que exatamente você quer saber?

-- É sobre o Caso Simmons -- informou Kara.

A funcionária a encarou, como se medisse Kara. Seus dedos ágeis finalmente pararam de digitar algo que ela não tinha deixado de lado nem para atender a garota.

-- Da parte de quem? -- quis saber a moça.

-- Representação da indiciada -- e como o olhar da outra deixou claro sua incredulidade, Kara apanhou seu certificado de estágio, que trouxera para eventuais emergências.

-- Hmm, estagiária... -- disse a moça.

“Um dia ainda vou ter um cargo” pensou Kara, que se limitou a sorrir.

-- No fim, são os que mais trabalham... Para aquela corja levar todo o crédito... -- acrescentou a secretária.

-- Ah é... -- Kara respirou aliviada.

-- Vou te passar com uma pessoa, e você pega as informações que precisar. Mas pensei que tivessem cópias e mais cópias do inquérito lá em National City.

-- O que eu quero não está no inquérito -- disse Kara.

A moça tremeu por um instante, algo que Kara notou, mas não soube interpretar. Uma porta à sua direita de abriu e por ela saiu um policial.

-- Simmons? -- perguntou, olhando para ela.

-- Eu... -- Kara sinalizou afirmativamente.

-- Por aqui.

Depois de três corredores com prateleiras lotadas de papel, uma porta foi aberta e Kara se deparou com uma sala vazia. No canto, um bebedouro. Perto dele, um sofá velho de dois lugares. Nenhuma janela. Nenhum quadro na parede. Nenhuma planta decorativa.

-- Vão chamá-la daqui a pouco -- informou o policial, saindo em seguida.

Kara andou até o sofá, com medo de que o móvel fosse se desmontar se ela se sentasse nele. Isso não aconteceu, mas ela não se sentiu nem um pouco aliviada. Ao longe, ouvia os ruídos da estranha rotina de trabalho naquele lugar.

Ouvia telefones, computadores, celulares... Muitas vozes! Passos e mais passos no corredor onde ficava a sala “dela”. Por quase uma hora e meia, Kara esperou com a dignidade de quem acreditava que seria chamada no instante seguinte.

Por outros quarenta minutos, esperou enquanto lutava contra a própria raiva e frustração, além da curiosidade de deixar a sala e perguntar se por acaso não lhe tinham esquecido ali.

E nada aconteceu.

-- Saco! -- murmurou ela, para espantar o ódio sem precisar chutar o velho sofá.

“Não deveria ter me apresentado como estagiária, tinha de ter dito que era advogada do caso” pensou ela. Não que tivesse como provar isso, mas...

Sua linha de raciocínio foi interrompida quando os ouvidos captaram uma estranha sequência de passos, num ritmo que lhe soou familiar.

A porta se abriu, revelando o mesmo policial que a colocara ali. Enquanto Kara se levantava, uma mulher pedia licença ao policial e entrava.

Quando a porta se fechou, trancando as duas naquela sala, Kara teve certeza de que estava metida numa enorme enrascada. Pelo menos a pergunta que lhe importunara o dia todo estava respondida: sim, tinha ido longe demais!



O Triângulo Where stories live. Discover now