O Casamento

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Andrea levou algum tempo para se situar. A primeira conclusão que chegou foi de que não deveria ter dormido mais que três míseras horas. E isso nada tinha a ver com a sua insônia. Sorrindo ante a lembrança de ter feito amor com Lena, abriu os olhos. Sua namorada andava pelo quarto, um pouco agitada, com o celular colado ao ouvido. A movimentação dela havia acordado Andrea, que reclamou com um bufo.

Lena afastou o telefone do rosto e se voltou na direção dela:

-- Bom dia? -- sorriu.

-- Como você consegue se levantar com essa disposição toda? -- indignou-se, enquanto se livrava das cobertas.

-- Lamento -- a expressão no rosto de Lena era de desolo. -- Mas não poderia lhe deixar dormir mais. Em breve estaremos atrasadas.

-- Temos mesmo de ir?

Lena mordeu os lábios.

-- Já conversamos sobre isso.

-- Saco -- batendo os pés, Andrea foi até o banheiro.

Prestando atenção através da porta fechada, pôde ouvir o restante da conversa telefônica, ou pelo menos trechos dela:

“Sim, ela acabou de levantar...”

“Eu estarei aí, não se preocupe”.

Abrindo a porta de súbito, Andrea inquiriu:

-- Posso saber quem está te ligando a uma hora dessas?

-- É o Mike. Quer falar com ele?

Andrea virou os olhos e voltou pro banheiro. Quando saiu, minutos depois, Lena não estava mais no quarto. Resignada, Andrea começou a se vestir. Tinha deixado a roupa pronta e sua mala ainda estava aberta, mas feita. Lena voltou logo depois, com uma caneca de café e biscoitos.

-- And, é só um final de semana prolongado. Relaxa -- disse a advogada, carinhosamente.

-- Um final de semana prolongado em National City, com dezenas de piranhas a sua volta e você no seu território de caça.

Lena respirou fundo, pousou a bandeja no móvel e se aproximou da namorada:

-- Eu amo você, Andrea. Não terei olhos para mais ninguém -- beijou-a nos lábios.

-- Saia da linha, pra ver! -- ameaçou Andrea, antes de um novo beijo.

-- Você sabe que mais cedo ou mais tarde eu terei de voltar, não? Precisa confiar em mim, And.

Ela baixou os olhos, pensativa.

-- Podemos deixar essa conversa para outra hora? -- pediu.

-- Claro -- Lena sorriu, pacientemente.

Durante o vôo, pouco conversaram. Andrea dormiu a maior parte do tempo, e Lena ficou detida em leituras diversas. Assim que chegaram, partiram para o apartamento da advogada e resolveram descansar antes do próximo compromisso: jantar com Mike.

O casamento de Ellen Matthews, evento para o qual as namoradas haviam retornado ao País, seria realizado à moda antiga: no sábado haveria um almoço seguido de uma tarde de festa para aproximar as famílias dos noivos e seus convidados. À noite, ocorreria a despedida de solteiro -- em locais diferentes para homens e mulheres. Domingo, no final da manhã, a cerimônia religiosa, na qual Lena faria par com Mike, como madrinha da noiva. À tarde, almoço e mais festas. 

Mike, como irmão caçula da noiva, tivera total liberdade para convidar seus amigos mais íntimos, por isso Winn, Kara e Carina também estavam na lista. Winn fora o último a confirmar sua presença, conforme Mike contou às amigas, logo após o reencontro.

-- E como vocês estão? -- perguntou Andrea.

Ele suspirou tristemente antes de responder:

-- Ah, tudo bem. Conversamos sempre... Ligamos de vez em quando. Tudo normal.

-- E fora ele, alguma novidade? -- insinuou Lena.

Mike sorriu.

-- Bom, teve um carinha em Miami...

-- E...?

-- Trocamos telefone. Ele é ótimo, mas... Ele lá e eu cá -- abriu os braços.

-- Pra você ver como relacionamentos à distância não funcionam -- disse Andrea, se inclinando na direção da namorada.

Esforçando-se para demonstrar paciência, Lena respondeu de forma agradável:

-- Ainda bem que no nosso caso, vai ser apenas por um breve período de tempo.

-- Perdi alguma coisa? -- intrometeu-se Mike.

-- Nada, Mike -- disse Andrea. -- Só a sua amiguinha querendo voltar pra National City.

-- And, eu tenho um escritório aqui. E não vamos discutir isso na frente do Mike.

A contragosto, Andrea permitiu que o assunto mudasse, mas logo em seguida, teve de atender a um telefonema da madrasta, e se afastou da mesa. Mike aproveitou a oportunidade:

-- E então? -- sorriu. -- Finalmente namorando, hein?

O rosto de Lena se iluminou enquanto ela formulava o que dizer.

-- Pois é.

-- Não vou nem perguntar se você está feliz. Está escrito nos seus olhos.

A advogada ficou sem graça e disfarçou com o copo de bebida. Andrea voltou logo em seguida, afagando sua nuca antes de se sentar ao seu lado e apanhar sua mão, por baixo da mesa. Em silêncio, trocaram um olhar apaixonado.

-- Eu já tinha desistido de achar que viveria para ver vocês duas juntas -- brincou Mike. -- Parece surreal.

-- Quanto exagero. Só demoramos um pouquinho pra nos acertar... -- disse Andrea.

Os três riram.

-- E cada segundo da espera valeu a pena -- completou Andrea, sentindo Lena apertar sua mão, enquanto sorria bobamente.

Não se demoraram após o jantar, pois os três estavam muito cansados. Mike, por ajudar com os preparativos do casamento, e as garotas por causa da viagem.



* * *



O primeiro almoço de celebração foi tranquilo. Nele, estavam apenas os parentes dos noivos e os amigos realmente íntimos. Lena tinha muitos conhecidos ali, enquanto Andrea estava ligeiramente deslocada. No final da tarde, restavam poucas pessoas ainda.

Ao perceber Andrea ocupada em uma conversa com Mike, Ellen se aproximou de Lena:

-- E aí, madrinha...

Lena riu por um instante.

-- Acho bom ter certeza do que está fazendo, não quero ser culpada depois por avalizar um contrato que não deu certo -- a advogada piscou o olho.

Foi a vez da noiva rir. Lentamente, afastaram-se dos outros, rumo ao oeste do jardim. O sol se punha no horizonte, iluminando seus rostos.

-- É, amanhã é o grande dia -- disse Ellen.

-- Nervosa?

-- Um pouco.

Lena arqueou as sobrancelhas.

-- Tá, digamos que você já colocou o primeiro pé na corda bamba e está todo mundo lá embaixo esperando que você atravesse... -- disse a noiva. -- É assim que me sinto.

-- Vai dar tudo certo -- Lena lhe afagou o ombro.

-- E você e a Andrea? Já deu tempo para os problemas começarem?

Lena desconversou balançando a cabeça. Ellen havia ligado assim que soube da novidade pelo irmão. Estimava muito as duas e ficara feliz com a notícia de que finalmente estavam juntas.

-- Levando em conta que é meu primeiro relacionamento sério, acho que estou indo bem -- sorriu.

Ellen suspirou, encostando-se na mureta.

-- Eu espero pelo dia de amanhã desde que me conheço por gente. Nossa, mil planos, sonhos... Agora que finalmente chegou, estou em pânico! -- fez uma pausa. -- Não que eu pense em desistir, claro que não. É só... É pânico mesmo...

-- É normal, Ellen. Você ama o Andrew, não?

-- Muito. Sou apaixonada por ele há tanto tempo... Além do que, somos bons amigos -- sorriu. -- E não há ninguém no mundo em quem eu confie mais. Que minha família não me ouça...

Lena riu comedidamente. Depois, acabou por se apoiar na mureta também, com o olhar distante.

-- Sempre me perguntei por que as pessoas se casam.

-- Por amor? -- Ellen ficou confusa.

-- Nem todas as pessoas que se amam são casadas. Menos ainda, todas as pessoas casadas se amam.

-- Por costume? -- propôs a noiva.

-- No passado, talvez. Antigamente não havia vida para uma mulher sem um casamento... Mas hoje em dia?

-- Aaam... Você não está ajudando na minha crise de pânico...

Dessa vez, a advogada riu com gosto.

-- Desculpe.

-- Bem, só posso falar de mim, não? Andrew e eu namoramos há milênios... -- riu. -- Já temos nossas carreiras, estabilidade, nossos planos combinam, nossas famílias se adoram. Durante esse processo, pensamos em casamento diversas vezes, a maioria delas por impulso, outras por causa das incessantes piadinhas...

-- Entendo. E o que mudou agora?

-- Isso vai soar estranho, mas... Só namorar não estava mais dando certo. Começamos a brigar por coisas tolas. E, veja, não estou dizendo que vamos casar porque estamos em crise, isso seria absurdo! O status “namorando” é que atrapalhava tudo. Nós nos amamos demais pra continuarmos em casas separadas. Nos amamos demais pra aceitar uma relação com menos compromisso. Eu não consigo mais me ver sem ser como a mulher dele. Então, por que esperar mais? Pra nos torturar?

O sorriso na face de Lena era franco.

-- Acho que se todo mundo tivesse o discernimento de vocês, não existiriam divórcios.

-- Pode ser -- Ellen deu de ombros. -- Ou, quem sabe, em menos de um ano, estaremos brigando pela escritura do apartamento e a guarda do cachorro.

-- Antes pareceu que você estivesse convencida a respeito do amor eterno -- comentou Lena.

-- Não... Eu sei que hoje ele é o homem da minha vida, mas quem pode saber do futuro?

-- Então...?

-- Então construímos nossa casa no terreno do presente -- sorriu. -- E se o divórcio vier um dia -- suspirou -- espero que saibamos dizer adeus sem deixar mágoas.

Aquela última frase ficou martelando os pensamentos de Lena. A princípio, ela se esforçara para acalmar Ellen, simplesmente jogando conversa fora, como uma boa madrinha de casamento. Mas, ironicamente, quem acabou abalada pelo diálogo foi a advogada.

Ela não pôde evitar olhar na direção da namorada. Andrea ria animadamente de algo que Mike dissera. Parecia tão feliz! Exatamente como Lena se sentia. Por outro lado, havia no meio da história delas um adeus e uma possível mágoa. Para que ficassem juntas, Lena abrira mão de Helena, exatamente quando enfim poderiam viver o seu amor.

Até ali, tinha negado até para si mesma. Mas depois da conversa com Ellen, a conclusão inevitável se abateu sobre ela: carregava uma imensa culpa.


* * *


Kara não poderia estar mais feliz com o seu programa para a noite de sábado: uma despedida de solteira! Tudo bem que a atração principal provavelmente seria um grupo de homens seminus saindo de dentro de um bolo, visto que a noiva era heterossexual, mas, pelo menos, fora os dançarinos, só haveria mulheres no bar reservado para a ocasião. E que mulheres!

Carina deu um toque em seu celular quando estacionou em frente ao prédio. Já pronta, Kara desceu apressada, e qual não foi a sua surpresa ao ver a amiga sair do carro e correr para abraçá-la calorosamente.

-- Ka!!!

-- Oi!!! -- abraçou-a de volta, muito feliz. – Carina, que saudade!!!

Riram enquanto se recompunham.

-- Nossa baby, você tá ótima -- elogiou Carina.

-- Ahh... -- Kara ficou vermelha na mesma hora. -- E cadê o presente que você disse que ia trazer da África?

-- Tá lá em casa -- Carina piscou o olho. -- Quando der, você pega... -- riu maliciosamente.

Kara gargalhou, deu a volta no carro e entrou. A caminho da festa, ficaram comentando as novidades.

-- Então, fez alguma coisa além de ver zebrinhas e leõezinhos no safári? -- inquiriu Kara, ligando o som.

O sorriso de Carina não deixava dúvidas.

-- Talvez.

-- Conta aí.

-- Adivinha quem foi me ver na Cidade do Cabo?

Kara deixou o queixo cair.

-- Não!? A Charlie?

-- SIM!

-- Ahaha, eu sabia que esse destino ermo escondia uma tramóia sua. Ela pelo menos sabia que estava indo ver você?

-- Humm, mais ou menos -- riu. -- Uma antiga colega nossa deixou escapar os planos dela... Aí, sabe como é... Subitamente descobri que sempre quis conhecer a África do Sul.

-- E como foi? -- Kara fez a pergunta com cuidado.

-- Tenso, no começo. Deu um trabalho danado fingir a coincidência, sabe?

Kara riu, ao que Carina continuou falando:

-- Mas acabamos ficando de novo. E... -- derreteu-se. -- Ain, Kara, foi tão lindo...

Sorriram quando os olhares se encontraram.

-- Fazer amor é outra coisa... -- comentou Kara.

-- É -- Carina respirou fundo. -- Foi a semana mais perfeita da minha vida. Melhor até do que quando fiquei com ela pela primeira vez, sabe?

-- Imagino. Mas e agora?

-- Tenho certeza que ela ficou balançada de novo. Não vou pressionar.

-- Sensato.

Carina ficou algum tempo em silêncio, mas acabou não resistindo em se abrir ainda mais:

-- Ain, era tão lindo!!! Ela me acordava com milhões de beijos, dizendo baixinho que me ama...

-- Ah, Carina, eu fico muito, muito, mas MUITO feliz por você. Sei o quanto a ama.

-- Demais... -- ela confirmou. -- Mas e você? Livre, leve, solta e de férias... O que aprontou?

-- Nada sério -- despistou Kara. -- Ninguém importante, pelo menos.

-- E uma porção de desimportantes, se lhe conheço bem.

Kara riu, encabulada. Realmente, na ausência de Carina, tinha se obrigado a ir à luta.

-- É, mas ainda não foi dessa vez que apareceu “a garota”.

Carina a olhou de lado, séria e analítica.

-- Sei.

Mas bem poderia ter dito: “me engana que eu gosto”.

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