Lealdade

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No dia seguinte, Kara acordou mais cedo. Precisamente uma hora antes que o costumeiro. Em seu ritmo de sempre, arrumou-se, preparou um café, apanhou suas coisas e deixou o apartamento.

Ao invés de partir direto para a faculdade, porém, a garota resolveu tirar uma história muito séria a limpo. Não poderia permitir que Lena continuasse com aquele julgamento leviano sobre ela.

Quando chegou na portaria, o senhor já conhecido lhe avisou que Lena havia acabado de descer, e que se Kara se apressasse, era capaz de pegá-la na garagem.

A garota assim o fez. E, por sorte, Lena sequer havia entrado no carro.

– Lena? – chamou ela, em tom firme.

A advogada se virou, não sem demonstrar toda a sua surpresa no olhar.

– Tem um minuto?

Os pensamentos sempre rápidos de Kara não ignoraram que era bastante cedo para Lena estar partindo para o escritório, mas em vista da situação em que elas se encontravam, a garota preferiu não perguntar nada a respeito disso. Não de cara, pelo menos.

– Se for realmente só um minuto, ou poucos deles, eu tenho.

As duas ficaram se encarando, como que discutindo em silêncio se teriam aquela conversa ali mesmo, ou se havia tempo para encontrar um lugar mais adequado.

Os olhos de Lena então vagaram até a mochila que Kara trazia pendurada em um dos ombros.

– Depois daqui, você vai pra aula?

Kara confirmou apenas movendo a cabeça.

– Entre no carro, então.

Ela obedeceu. Tinha passado as horas subsequentes ao sonho tórrido da noite anterior prevendo infinitas possibilidades de como desenrolaria aquele assunto. Duas coisas lhe pareceram muito claras após a reflexão: primeiro, não estava disposta a insistir caso Lena não acreditasse em seus argumentos iniciais; e segundo, jamais, em hipótese alguma, deixaria a conversa tomar o mesmo rumo daquela ocorrida apenas em seu delírio.

Não poderia admitir que Lena sequer desconfiasse do verdadeiro efeito que tinha sobre ela.

Já dentro do carro, assim que Lena deu a partida, Kara tomou para a si a responsabilidade de começar:

– Definitivamente, não fui eu quem contou para a Andrea que você estava em Nova Iorque. Quanto a você ter se encontrado com a Helena, pra mim não passava de uma desconfiança.

Lena suspendeu a respiração por alguns segundos, mordendo os lábios. Ter aquela conversa dentro do carro era conveniente para ambas, assim, não precisavam olhar nos olhos uma da outra.

– Você não é de mentir, Kara. Tanto, que quando resolve criar sua própria versão dos fatos, não consegue defendê-la por muito tempo.

– Sim, eu sei disso. E repito, não fui eu. Eu havia até pensando em elencar uma série de motivos que poderiam ser citados para convencer você de que não pode ter sido eu, mas...

– Mas existem mais motivos lhe incriminando – completou Lena.

– É, talvez. Exceto, é claro, o fato de que fazer uma coisa dessas vai contra tudo o que você sabe sobre mim. Nesse caso, a sua alegação só se sustenta em cadeia com as audiências nas quais eu lhe representei, segundo você, querendo levar vantagem.

Lena não disse nada. Continuou dirigindo com os ouvidos atentos à conversa.

– Você não pode usar como prova de um crime uma acusação para a qual igualmente não tem provas. Até a reles estagiária aqui sabe disso.

Admirada, Lena riu.

– Esse seu discursinho tem uma versão por escrito? Porque acho que isso nos pouparia tempo, não é?

Kara bufou, cruzando os braços que antes jaziam largados sobre a mochila apoiada em seu colo.

– Dá pra você ser menos cabeça dura e me ouvir? Sou eu, a Kara que você conhece desde sempre. Que você conhece melhor que ninguém. Se eu tivesse mesmo contado, estaria me gabando na sua cara, porque teria feito só por isso, afinal.

– Só?

– Não, Lena, na verdade eu tenho um plano maligno de roubar a Andrea de volta – ironizou a garota.

Mais uma vez, Lena não comentou. Preferiu mudar o foco:

– E as audiências?

– Eu sou uma cumpridora de ordens naquela firma. Como você não estava, não tinha como discutir uma deliberação do George.

– Pois saiba que quando você voltar, comigo lá ou não, só vai precisar discutir com ele, mesmo.

Kara arregalou os olhos, coisa que Lena notou, pois desviara o olhar na direção dela, rapidamente. Sem paciência para fazer mistérios, a advogada explicou:

– Ele rescindiu a sociedade.

– Putz, Lena!

– Pois é – amargamente, Lena encarou a janela ao seu lado, de modo a expor seu rosto o mínimo possível.

Fez isso mesmo sabendo que Kara tinha a exata noção do que ela estava sentindo.

– Ele tinha acabado de me dar a notícia quando nós duas nos esbarramos no corredor.

Aquilo explicava, em parte, o estado de nervos de Lena na ocasião. Mas Kara não se daria por satisfeita somente com a rasa explanação.

– Eu... Eu sinto muito.

Lena apenas respirou profunda e vagarosamente. Kara compreendeu que em vista daquilo, a discussão das duas não deveria ser o maior infortúnio a permear os pensamentos da advogada. E, estranhamente, sentiu-se tola.

– Quando ele me pediu para analisar os casos e lhe dar cobertura nas audiências, não avaliei todas as implicações que isso poderia ter – declarou Kara. – Até pela forma como você desapareceu, sem dar explicações, cheguei a pensar que você planejara exatamente isso. Você sabia que alguém teria de ir. Poderia ter imaginado que seria eu.

– Eu não pensei em nada quando viajei – confessou Lena. – Nem sabia direito o que estava deixando para trás. Sequer tinha certeza de que iria voltar.

– Mas... – Kara parou de falar ao se dar conta de que não fazia idéia do que dizer.

Lena sem saber de alguma coisa? Era muito estranho.

– Você estava certa – comentou Lena, para logo em seguida complementar: – Naquela última conversa séria que tivemos.

– Hum.

– E, pelo visto, eu fiz com a Helena no passado a mesma coisa que estava fazendo com a Andrea.

– Então foi por isso que você foi vê-la! – admirou-se a garota.

– Por que mais seria?

– Bem... – Kara riu. – Recaída? – sugeriu.

Lena quase riu.

– Nem que eu quisesse – comentou. – A Helena me odeia. Agora, mais do que nunca.

– Eu lamento. Ela deve ser importante pra você.

– Eu acho que é mais fácil para ela, odiar.

Kara não precisou de mais que um segundo para concluir o óbvio:

– Sensato – declarou.

Em seguida, finalmente deu vazão a sua curiosidade:

– Você estava indo pra firma, já?

– Sim.

– Está voltando à velha forma, hein?

– Horário novo – explicou. – Tenho um novo chefe, sabia?

– Você saiu do escritório? – admirou-se Kara.

– Não. O Jim.

– O QUÊ?

Lena habilmente ocultou todo o seu abalo emocional diante da nova perspectiva. Kara seguiu a conversa:

– Nossa, o George foi longe demais!

– Ele pareceu um pouquinho descontente, sim.

– Mas, Lena...

– Jim vai passar um mês supervisionando o meu trabalho.

– Isso é o fim dos tempos. Você é a melhor advogada do escritório e ele não passa de um babaca! Por que não o Phillip, então?

Lena não respondeu. Kara logo concluiria que aquilo não era uma medida profissional. Era uma humilhação. Nesse caso, Jim era realmente a pessoa mais indicada para aquela tarefa.

– Você parece bastante controlada, tendo em vista a sua situação – comentou Kara.

– Adiantou de alguma coisa perder o controle? Ficar cega de ódio? Atacar a pessoa errada?

Kara não quis discutir. Aquela declaração, ela sabia, era o quanto Lena poderia chegar mais perto de fazer um pedido de desculpas.

Depois de alguns minutos, tempo no qual as duas permaneceram caladas, Lena voltou a falar:

– Planos para a sua “folga”?

– Reorganizar minha vida acadêmica. Eu quase me esquecera de que tinha uma.

– E o processo? – questionou Lena.

– Qual deles?

A advogada rolou os olhos.

– Seus pais – disse, apenas.

– Ah, isso. O Jhon foi muito legal. Nem vai me cobrar os honorários – explicou. – Claro que eu tive de fazer uma porção de favores para ele, mas...

– Não faça isso, Ka. Pague a ele. Se não tiver como, eu lhe empresto.

– Por quê? – estranhou a garota.

– Para montar o processo ele teve de perquirir muita coisa da sua vida pessoal. Não se fica devendo um favor moral desse tamanho para alguém com meios de lhe prejudicar, um dia.

– Deus me livre, Lena, você desconfia de todo mundo. Ele é um cara super legal.

Dessa vez, além de virar os olhos, Lena bufou sonoramente.

– Pirralha... De novo essa santa inocência? Argh!

– Hmm. Não tinha pensado nisso.

– Converse com ele, diga que pensou melhor e peça um orçamento.

– Okay.

Em seguida, Lena estacionou o carro em frente ao prédio da faculdade de Kara. A despedida foi simples, cordial e rápida. Kara agradeceu pela carona, desejou bom dia e nada comentou sobre a recente briga. Lena fez a mesma coisa.

Ao sair do carro, e notar que Lena se fora logo em seguida, Kara sentiu as pernas bambas. Cada segundo tão perto dela, depois daquele sonho, tinha sido uma tortura. Era como se tivessem se tornado estranhas completas, de novo, e ao mesmo tempo, como se Kara nunca tivesse conhecido Lena tão bem.

Então, refletindo melhor sobre a conversa, o que ela fez durante todas as aulas da manhã, Kara chegou à conclusão de que Lena cedera fácil demais. Tanto na aproximação da garota quanto durante sua argumentação. Era como se antes mesmo de Kara começar a falar, Lena já tivesse se dado conta da burrada que tinha feito.

Ou, num pensamento que Kara se esforçou para dissipar imediatamente, era como se aquela discussão ocorrida somente no sonho, tivesse realmente acontecido, para as duas.


* * *


Ignorante do avanço do diálogo entre Lena e Kara naquela manhã, George mais uma vez tomava café com sua esposa. No olhar perdido do homem que amava, Mary Alice percebeu que ele andava mastigando algumas idéias.

– Mais café? – ofereceu, sempre tão gentil e doce.

– Obrigado – ele estendeu a xícara.

– Então, qual o próximo passo? – questionou ela.

George balançou a cabeça, deixando escapar todo o ar preso.

– Lena aceitou fácil demais.

– É como eu disse, querido, ela reconheceu seu erro.

– Duvido.

– Que tem em mente?

– Ainda preciso me certificar da lealdade dela – confessou à esposa.

– Achei que não precisasse mais de provas, depois que ela arriscou a própria vida no caso Simmons, para ficar do seu lado.

– Para ficar do lado daquela mulher – contradisse ele.

– Ah, querido, eu não acredito que você está se deixando levar por um preconceito tão tolo. Você nunca foi machista!

– Não é isso.

– É isso, sim. Desde que você me contou o que descobriu sobre a Lena, sua relação com ela mudou completamente.

– Isso é uma acusação leviana – defendeu-se ele.

– Eu conheço você, George – Mary Alice foi dura.

Ele suspirou, esfregando o rosto que já parecia cansado àquela hora da manhã.

– Não fui eu quem mudou. Foi ela. E eu sei exatamente quando isso começou. Eu tinha a Lena nas mãos até cerca de um ano atrás.

– Aí então a sua mente de troglodita da pré-história achou um absurdo ela ser homossexual – observou Mary Alice.

– Já disse que não!

– Ah, todos os homens são iguais.

George engoliu a réplica nada educada que já tinha na ponta da língua. Pelo contrário, respirou fundo, buscou alguma calma dentro de si e voltou a falar quando se sentiu mais lúcido:

– A primeira vez que Lena ousou me enganar foi quando me manipulou para escolher o currículo da Kara como nova estagiária.

– Noto sempre uma afeição de sua parte com relação a essa garota.

– Que Kara sempre fez por merecer – confirmou George. – Mas no momento, preciso pensar com a cabeça e não com o coração.

– Ela não serve para o trabalho?

– Pelo contrário, tem futuro. Mas, tão logo passou a fazer parte dos casos mais destacados, a perspectiva mudou. Eu notei facilmente que ela exerce um tipo de controle sobre a Lena.

– E você, sobre a Kara.

– Sim. Desse modo, ainda pude me sair bem. Mas não é preciso ser um gênio para perceber que isso não foi um avanço, mas um retrocesso. Antes, eu tinha Lena nas mãos. Agora, dependo da boa vontade da Kara.

– Por que acha que isso acontece?

– Posso estar bancando o Freudiano canastrão, mas creio que seja um caso clássico de se projetar numa pessoa mais nova. A Lena tenta impedir que a Kara cometa os mesmos erros que ela. E ouve a Kara como se ouvisse sua própria consciência, que ela perdeu por aí, não sei quando, não sei como.

– Em resumo – retomou Mary Alice – a mesma coisa que você sempre fez com a Lena, desde que a conheceu.

Ele encarou a esposa, bastante surpreso.

– Claro que não.

A mulher se levantou, com a desculpa de apanhar o leite na geladeira. George percebeu que ela não insistiria verbalmente, mas que não tinha sido demovida daquela idéia. Então passou ele próprio a pensar na possibilidade, quando após a breve despedida, rumou para o escritório.

Lena, ao que George foi avisado, já estava em sua sala. Sem rodeios o chefe bateu a sua porta.

– Entre – autorizou a advogada. – Bom dia, George.

– Bom dia – cumprimentou ele, em tom sério.

– Alguma novidade?

– Não. Apenas lembrei que deixei escapar uma coisa em nossa conversa de ontem.

– Prossiga – autorizou Lena.

– Como tutora do estágio da Kara, diante do que aconteceu recentemente, você pode anexar um ofício ao relatório de avaliação, prestando contas da suspensão dela, por motivo de insubordinação.

– Hum.

– O que é uma pena, não é mesmo? Antes disso, o currículo dela era irrepreensível. Será uma mancha e tanto – comentou George.

– Realmente. Mas, George, eu creio que a suspensão ficou de bom tamanho. Não será necessário levar isso a instâncias maiores – declarou Lena.

George sorriu enquanto os dois se encaravam.

– Lena, não foi uma sugestão. Foi uma ordem.

Lena engoliu em seco, não lhe ocorrendo de imediato qualquer frase que pudesse usar. Ciente disso, George apenas acenou e deixou sua sala, fechando a porta atrás de si.

Mordendo os lábios, Lena concluiu que estava ficando cada vez melhor em controlar sua raiva, uma vez que nem sequer socara a mesa, sendo que seu sangue fervia naquele momento.

Resoluta, apanhou o telefone e mandou chamar Jim. Instantes depois, a secretária retornou a ligação:

– O Doutor Jim solicita que você vá encontrá-lo, na sala dele.

– Mas é claro, estou indo agora mesmo – respondeu Lena, num tom excessivamente cordial.

Findada a ligação, Lena bufou, sussurrando vários palavrões.

“É só por um mês... – disse a si mesma. – Um mesinho de nada, e eu me cobro de todos eles...”

Conforme o prometido, deixou sua sala e se encaminhou até a ala nova, onde ficava o escritório de Jim.

– Com licença?

– Entre, Lena – autorizou ele.

– Bom dia, Jim. Tudo bem com você? – sorriu a advogada.

Arqueando a sobrancelha, ele não pôde deixar de pensar que Lena nunca havia lhe perguntado se ele estava bem. Ainda mais naquele tom de puxa-saco, que outrora tinha sido dele.

– Tudo ótimo. Sente-se.

– Obrigada – ela agradeceu e obedeceu.

Definitivamente, Jim não conseguia imaginar como uma pessoa poderia mudar da água para o vinho, como Lena tinha mudado. Se a mudança era verdadeira, ou não, ele não se importava. Estava amando as coisas do jeito como elas tinham ficado.

– Trouxe o relatório que eu pedi? – cobrou Jim.

Lena sorriu sem graça.

– Infelizmente ainda não o concluí, mas...

Jim a interrompeu:

– Quanta incompetência!

Lena contou mentalmente até dez e sorriu brandamente.

– Estará pronto e aqui sobre a sua mesa ainda antes do intervalo do almoço, eu garanto – afirmou ela. – Eu vim aqui porque tenho um assunto um pouquinho mais importante para discutir.

– Eu decido o que é importante ou não, Lena.

Ela se limitou a sorrir, consentindo. Por sua mente, uma gama variada de xingamentos se misturava a idealizações de ataques físicos de resultados muito dolorosos para Jim. Ele, entretanto, percebeu apenas o sorriso submisso.

– Posso pelo menos expor a minha idéia, para que você a avalie? – propôs Lena.

– Se não for tomar muito do meu tempo... – ele fez um gesto vago.

– Irei direto ao ponto, nesse caso. Agora que você é meu supervisor, e lembrando de várias situações em que você manifestou o desejo de ter um estagiário, eu pensei: “nada mais justo que o Jim tenha a tutela do estágio da Kara”.

– Nada mais justo? – ele avaliou a possibilidade, coçando o queixo.

– É a melhor estagiária do escritório – acrescentou Lena. – Além de trabalhar na sua área.

Ele estreitou os olhos.

– O que eu ganho com isso?

– Além da ajuda preciosa da Kara, que passará a auxiliar nos seus casos e não mais nos meus, isso irá para o seu currículo. Pense comigo, Jim, o Phillip tem cinco estagiários só pra ele, e você não tem nenhum pra você.

– Isso é verdade.

– Mas agora você pode ter a Kara, que trabalha por duas e é inteligente por três.

– Dois mais três, igual a cinco... – disse ele, como que pensando alto.

– E mais, você é supervisor de Lena Luthor. Nesse caso, tem mais os meus três estagiários novos.

– Sim! – animou-se ele.

– Então, o que me diz?

– Claro, sou totalmente a favor – comemorou ele, arrancando o primeiro sorriso sincero de Lena naquela conversa. – Porém o Doutor Martelli pode não gostar disso.

Lena torceu os lábios.

– Por quê?

– Ah, por nada.

Jim não quis admitir para Lena que desconfiava ser usado numa manobra do dono do escritório para colocar Lena em seu devido lugar. Nesse caso, todo aquele arranjo era passageiro, e fazer mudanças estruturais além daquela poderia desgostar George.

Rapidamente, Lena acrescentou:

– Podemos deixar isso apenas entre nós, por enquanto. A supervisão de estágio já vai começar a contar no seu currículo e a Kara já vai começar a trabalhar para você, mas deixamos para contar para o George somente quando a poeira baixar. Aí já estará tudo organizado, provavelmente ele nem vai reclamar.

– Você acha?

– Eu tenho certeza – garantiu a advogada.

– Hum. É, de fato, parece uma boa idéia.

– Sabia que iria gostar – comentou Lena, sorrindo.

– Se era só isso, pode voltar para o seu relatório – ordenou ele, fazendo o sorriso dela sumir por um segundo. – Ah, e não esqueça de encaminhar a papelada da Kara.

– Claro, Jim, deixe comigo.

– Outra coisa: não fique me chamando pelo nome ou de “você”. Algum cliente pode ouvir, não ficaria bem.

– Certamente, doutor.

– Assim está bem melhor. Agora pode ir.

Lena deixou a sala dele e voltou para a sua. Não fosse o sucesso de ter levado a cabo o começo de seu plano, não teria conseguido reunir forças nem mesmo para voltar ao trabalho.

Ainda assim, teve de repetir em voz alta:

– É só por um mês, e esse mês vai acabar logo...


* * *


Depois dos primeiros dias, Lena poderia até mesmo dizer que estava conseguindo se acostumar com a nova rotina. Seus sorrisos falsos já saiam automaticamente. Ela estava se tornando uma especialista em comportamento servil.

Se por um lado tudo parecia catastrófico, pelo menos havia uma vantagem: trabalhando naquele ritmo, depois de uma semana, tinha conseguido se reorganizar totalmente. E a sensação de ter na mão todos os seus casos, perfeitamente pensados, planejados e sob controle, era muito boa.

Kara voltou para o escritório depois de cumprir a suspensão. Surpresa ao ter de seguir as ordens de Jim e não mais de Lena, ouviu de ambos a explicação que isso se devia ao fato de Jim ser supervisor de sua tutora. Diligentemente, ela nada questionou.

Entre ela e Lena, a relação tinha voltado às boas. Com Lena aparentando estar bem menos estressada, o efeito se estendeu não só à garota, mas também aos novatos Henry, Marcus e Cristine.

Discretamente, George avaliava as mudanças que demonstravam o sucesso do seu plano. Entretanto, como um bom conhecedor da índole de Lena, o dono do escritório não se deu por vencido, e ao saber que Kara estava na sala da advogada, e ouvir os risos ao passar diante da porta, resolveu dar mais uma cartada:

– Com licença?

As duas pararam de rir ao mesmo tempo, endireitando a postura diante da entrada do chefe.

– Sim, George? – disse Lena, depois de limpar a garganta.

– É bom ver que as duas agiram como adultas e superaram aquele incidente do passado – comentou, alternando o olhar entre Lena e Kara.

– Não há mais nada com que precise se preocupar – garantiu Kara. – E, mais uma vez, pedimos desculpas... Não é? – olhou pra Lena.


– Claro – disse a advogada, que dentro embora não conseguiu sorrir.

Era como se soubesse exatamente o que George pretendia naquela entrada inesperada.

– Desculpas aceitas, Ka – disse o chefe. – Sei de seu caráter e tenho certeza de que um fato desses não irá se repetir.

– Jamais – reforçou ela, achando o tom dele estranho.

– No entanto, Lena já deve ter lhe avisado das consequências.

Kara a encarou interrogativamente. Lena molhou os lábios, nervosamente.

– George...

– Não vou esperar até o final do mês, Lena – colocando sobre a mesa a folha de papel que trouxera consigo, George continuou: – Imaginando que você poderia ter esquecido do que pedi, fiz eu mesmo o relatório. Assine.

– Que relatório? – Kara não conteve a curiosidade.

– Uma justificativa para a suspensão que você cumpriu, Kara – George se ocupou de explicar, num tom absolutamente profissional.

– Mas...

– Eu lamento, Kara. Não tome como algo pessoal. Você sabe que errou.

Observando a garota, Lena notou que Kara respirava com dificuldade, tensa, como se não fosse capaz de acreditar no que seu raciocínio já lhe oferecera como as consequências daquele documento para o seu futuro.

Lena apertou os olhos por um instante. Ao perceber George atento a sua reação, não teve o que fazer a não ser apanhar sua caneta e assinar o ofício.

– Pedirei ao Elias que encaminhe agora mesmo à coordenação do seu curso, Kara. Quanto mais rápido, mais indolor, não acha?

Kara o encarou com os olhos escuros. Por um instante, George pensou em quando Lena fazia a mesma coisa.

– Eu concordo plenamente – declarou a garota.

– Bem, era só isso. Podem voltar ao... Trabalho.

Assim que ele fechou a porta, Kara encarou Lena. Seus olhos exigiam uma explicação, e Lena já sabia exatamente o que dizer:

– Confie em mim.

– Ah, claro. Vai mandar alguém sequestrar o Elias no meio do caminho?

– Ka... Eu sinto muito, mas você precisa manter a calma. Esqueça esse assunto, eu vou dar um jeito.

– Não tem o que fazer! Uma suspensão por insubordinação vai me ferrar pro resto da vida!

– Em primeiro lugar, não é tão drástico assim. Você tem mais de um ano de estágio num grande escritório, e sempre poderá explicar o que houve, caso seja questionada. Mas não vai ser – garantiu Lena. – Fique calma.

Os lábios trêmulos da garota deixaram evidente que calma era a última coisa que ela conseguiria sentir naquele momento.

– Vou voltar pra minha sala – disse ela, ao se levantar.

– Ka, espera!

– Me deixa, Lena. Eu preciso ficar sozinha.

Lena virou os olhos.

– Mande os outros três pra cá, então. Estava mesmo precisando apanhar uma coisa no fórum – solicitou ela, referindo-se a Marcus, Henry e Cristine.

– Por que não vai você mesma chamá-los? Ah, ops, melhor eu cumprir a ordem, né? Ou podem ser dois ofícios ao invés de apenas um no meu currículo...

Lena não disse nada. Kara tinha razão de estar magoada e naquele momento não havia nada que ela pudesse fazer, a não ser esperar até meados de abril, quando o estágio de Kara passaria por mais uma avaliação da faculdade.

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