Roommates

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Kara levantou da cama por puro impulso. Enquanto seus olhos recém abertos tentavam se acostumar com a claridade da sala, ela elaborava planos diabólicos de vingança contra quem quer que estivesse tocando o interfone.

– Pronto! – disse, mal humorada.

– Bom dia Ka!!! – um verdadeiro coro se fez ouvir do outro lado.

Com os sentidos debilitados pelo sono, a garota demorou a reconhecer as vozes.

– Quem é?

– Como assim “quem é”?

Pelo menos a cobrança lhe esclareceu parte da história, e ainda desnorteada, Kara perguntou:

– Mike? É você? Aconteceu alguma coisa?

Antes que o garoto confirmasse o que já parecia óbvio para Kara, ela ouviu outra voz, num tom que não tinha nem um pouco da animação dos rapazes:

– Ô Pirralha, dá pra abrir esse portão de uma vez?

Depois de um bufo, Kara acionou o botão que abria a tranca, recolocou o fone no gancho e partiu correndo para o quarto. Escovando os dentes ao mesmo tempo em que se trocava, tropeçou no jeans e caiu estatelada no chão.

– Maravilha! – ralhou consigo mesma.

Logo em seguida, ouviu o toque agudo da campainha.

– JÁ VAI! – berrou do quarto.

Quando finalmente abriu a porta, praticamente foi atropelada por Barry e Mike, que lhe sufocaram num abraço. Lena se esgueirou pela porta e ultrapassou o grupo.

– Gente, o que é que houve com vocês? – perguntou Kara. – Que horas são?

– Ooora, coitadinha, tá com carinha de sono! – Barry lhe apertou as bochechas.

– Eu disse que ela ainda estava na cama... – comentou Mike.

– Tá, tá bom, já deram bom dia, agora vamos logo com isso – apressou Lena.

Kara finalmente a encarou. Lena tinha o semblante sério, mas parecia estar se divertindo com a cena.

– Alguém pode me explicar o que está acontecendo? – cobrou Kara.

– Viemos lhe ajudar com a mudança – explicou Barry.

– Ahn? Hoje? – Kara encarou Lena de novo.

– É, hoje – disse a advogada, sorrindo finalmente.

– Mas por que tão cedo?? – Kara ainda sentia os olhos pesados e a mente turva por conta do sono.

Lena fez um gesto qualquer antes de se sentar confortavelmente no sofá.

– Tenho um compromisso mais tarde – respondeu ela.

Ao verem a expressão indignada de Kara, os dois garotos riram para amenizar o clima. Só então, Kara percebeu que eles haviam trazido caixas de papelão, deixadas no corredor do prédio.

– Sabe, vocês poderiam ter me avisado antes, assim eu deixaria tudo pronto – disse Kara.

– E perder toda a diversão? – comentou Lena. – Vamos ver o que a Pirralha esconde nas gavetas...

Kara saiu em disparada atrás de Lena, que, rindo, já havia entrado no quarto da garota.

– Más notícias, rapazes – informou a advogada, elevando a vós. – Nada da namoradinha secreta por aqui.

– Cheque o armário! – sugeriu Barry.

– Ou embaixo da cama! – ajudou Mike.

– Aff, até parece – reclamou Kara.

– Aqui está limpo – Lena voltou para a sala. – Vou olhar a área de serviço.

Kara balançou a cabeça, ainda mais indignada.

– Vocês vieram me ajudar com a mudança ou fazer um flagrante?

Como nenhum deles respondeu, Kara voltou para o quarto, batendo os pés.

– Vou prender o cabelo – avisou.

De onde estava, conseguiu ouvir que Lena ainda vasculhava o apartamento. Barry e Mike começaram a planejar o trabalho, e Kara respirou aliviada por Lucy ter tido um compromisso com os pais na noite anterior. Se sua namorada tivesse dormido com ela, como costumava fazer nos finais de semana, a situação teria sido, no mínimo, conflituosa.

– Onde você a escondeu?

Kara deu um pulo, assustada com a presença de Lena no quarto.

– Quer me matar do coração?

– Francamente... – Lena fez outro gesto de quem não dava a mínima. – Então, cadê ela?

– Ela quem?

– A outra jequinha, oras.

Kara virou os olhos, voltando a se ocupar com o próprio cabelo.

– Lógico que essa boa ação de me ajudar com a mudança só poderia esconder uma artimanha sua.

– Ajudar com a mudança? Ah, sim, acho que os meninos farão isso. Eles parecem bem animados.

– A ideia foi deles?

– Foi... – confirmou Lena, enquanto observava os detalhes do quarto.

– E como lhe convenceram a vir tão cedo?

– Subitamente curiosa? – Lena rebateu, irônica.

– Sempre mais, cada vez que você deixa de me responder alguma coisa.

Lena voltou a encará-la, e estava pronta para responder à altura quando algo a deteve. Estreitando os olhos, ela deu dois passos na direção de Kara.

– Que foi? – a garota estranhou o comportamento da amiga.

– O que é isso na sua testa? – apontou.

Instintivamente Kara tocou a própria face, mas logo se arrependeu:

– Ai!

Lena deu mais um passo na direção dela.

– Isso parece um galo... Você está bem?

– Estou... Estou sim. Eu... Aaam... Quando vocês chegaram eu fui me vestir correndo e... Meio que... Que... Tropecei...

Lena tentou ao máximo sustentar uma expressão de desolo, mas acabou começando a rir.

– Desculpa, é que...

– É, vai rindo, vai... Isso é culpa sua!

– Tá bom, Ka, desculpa... Eu vou apanhar um pouco de gelo – avisou Lena, deixando o quarto.

Enquanto a advogada se ocupava na cozinha, atraídos pelos risos, os rapazes foram até o quarto. Kara lhes contou o que houve e havia acabado de terminar quando Lena voltou.

– Pronto, ponha isso em cima do galo, vai fazer a dor passar.

Ao mesmo tempo, Mike e Kara encararam Barry, que era médico. Sem graça, o garoto comentou:

– É isso aí, faça o que ela disse...

Kara obedeceu, e pela visão periférica notou Lena mais uma vez atenta aos detalhes do quarto.

– Se está procurando por fotos dela, pode esquecer... – avisou.

– Nem na mochila? – Lena apontou.

– Claro que não. Isso fica jogado o dia inteiro lá na firma, acha que eu teria dado esse mole?

Lena suspirou derrotada.

– Mas aposto que tem no seu celular... – sugeriu.

Muito vermelha, Kara praticamente se atirou na direção do aparelho, e guardou-o no bolso imediatamente. Mike, que era quem estava mais perto da garota, logo avisou:

– Você sabe que na primeira distração eu consigo pegar, não sabe?

Kara deu de ombros, tirou o celular do bolso e, com um sorriso malicioso, escondeu-o dentro da calça.

– Aposto que não pega mais...

A expressão de nojo do rapaz fez todos rirem, inclusive Kara, que esperava exatamente por isso.

– Nesse caso, sobrou pra mim, não? – sugeriu Lena.

Kara se calou, sentindo o rosto ficar muito vermelho. Em suspense, os dois rapazes apenas assistiram.

– Você não ousaria... – disse Kara, que por via das dúvidas, foi caminhando de costas, afastando-se do alcance da advogada.

Lena respondeu com seu sorriso superior:

– Eu devo conhecer umas vinte ou trinta maneiras diferentes de abrir um jeans feminino... Com ou sem cooperação...

Terrivelmente nervosa, Kara não conseguiu esboçar uma reação, e agradeceu quando Barry quebrou o silêncio:

– Sabe o que seria legal? Se alguém ligasse pra Ka agora... Seu aparelho tem vibração, não tem?

Todos explodiram numa gargalhada e Kara aproveitou para expulsar os três do quarto.

– Tá legal, vocês todos, fora daqui! Cuidem da sala e da cozinha, eu me viro com o quarto...

Mike ia começar a protestar, quando a garota o cortou:

– Já disse: pra fora!

Antes de começar a arrumar suas coisas, a primeira atitude de Kara foi apagar do celular todas as fotos de Lucy, que por sinal eram muitas. Finalmente, com pressa e nervosa, ela começou a separar seus pertences.

Cerca de dez minutos depois, Kara teve de passar pela sala para apanhar uma caixa, e notou seus três amigos reunidos diante do sofá.

– Que foi? – questionou, curiosa.

– Que é isso aqui? – Mike apontou para as almofadas.

Kara teve de dar a volta, e assim que seus olhos seguiram a direção que o braço de Mike indicava, ela teve de disfarçar o susto com um tom de casualidade:

– Ah, claro, você eu entendo que não saiba do que se trata, mas a sua amiguinha aí não explicou não? – Kara se referia à Lena, que parecia igualmente intrigada.

– O que é nós sabemos muito bem – disse Barry. – Mas o que isso estava fazendo no meio das almofadas?

Mentalmente, Kara se perguntava a mesmíssima coisa...

– Devo... Devo ter esquecido de... De guardar, oras...

Mike apanhou o controle remoto da televisão, que estava sobre o braço do sofá, e com ele ergueu a peça diante dos olhos de todos.

– Não vem que não tem, Ka, eu nunca vi você com um sutiã push-up, muito menos roxo e com renda preta... – disse Mike. – Isso aqui não é seu.

Ao invés de encararem Kara, todos olharam muito curiosos para o próprio Mike.

– Vem cá, desde quando você conhece modelos de sutiã? – foi Kara quem teve coragem de perguntar.

Mike tentou inventar uma desculpa, mas depois de largar a lingerie de volta sobre o sofá, acabou comentando:

– Ellen e eu organizávamos desfiles de moda quando papai e mamãe viajavam.

Enquanto todos riam, Kara tentou se safar rapidamente:

– E é meu sim.

– Não é – teimou Mike. – Não pode ser.

– É novo – disse Kara.

Lena acabou chamando a atenção de todos com um riso baixo.

– Ora vamos, Ka. O Mike pode até entender de modelos de sutiã, mas eu entendo de tamanho e do conteúdo deles. E isso aí, definitivamente, não é seu.

Rapidamente, Kara se adiantou e apanhou a peça, voltando para o quarto sem dizer mais nada, e aproveitando pra bater a porta. Depois de risos amenos, Mike puxou Barry para sentar ao seu lado, no sofá.

– Essa foi boa... – comentou.

– Essa foi ótima... – complementou Barry.

Lena apenas balançou a cabeça, ainda rindo. Logo em seguida, Mike se levantou subitamente:

– Eca! Não acredito que eu sempre sentei nesse sofá! Imagina o que elas fizeram aqui!

Barry também se levantou imediatamente.

– Que droga, tem razão! Mas poderia ser pior: antes o sutiã do que a calcinha...

Lena apanhou sua bolsa e anunciou:

– Vou fumar um cigarro. Divirtam-se...

Muito mais pelo olhar turvo do que pelo tom de voz da amiga, Mike percebeu que Lena estava com a cabeça cheia. E quando isso acontecia, era sempre melhor deixá-la sozinha.



* * *



Andrea saiu da cama assim que seu despertador tocou. Sonolenta, foi caminhando até o banheiro, mas encontrou a porta trancada. Apurando os ouvidos, notou o chuveiro ligado. Com isso, resolveu ir adiantando seu café da manhã. Quinze minutos depois, voltou até a porta e bateu:

– Edward, anda logo!

O garoto respondeu qualquer coisa e Andrea bufou, decepcionada.

– Você caiu numa poça de lama durante o sono ou o quê? Que demora nesse banho, droga!

Atraída pelas vozes, Ellie deixou seu quarto, vestindo um pijama xadrez que parecia ter sido furtado do baú do avô da garota.

– Que que houve? – murmurou, encarando Andrea.

– Temos uma noiva no nosso banheiro de novo! – Andrea respondeu de propósito num tom que fosse ouvido do lado de dentro.

– Eu já disse que já vai... – respondeu Edward.

Sabendo que só lhe restava esperar, Andrea encarou Ellie:

– Ainda não se vestiu? Você não tem um seminário hoje?

A garota arregalou os olhos. Claramente tinha se esquecido do compromisso, o que não seria nenhuma novidade.

– Que horas são? – perguntou, em desespero.

– Quinze pras oito – disse Andrea.

Esmurrando a porta com violência, Ellie ordenou:

– EDWARD, SAIA IMEDIATAMENTE DESSE BANHEIRO OU EU VOU ARROMBAR!!!

– Já vai! – ele respondeu, mal humorado com a insistência das garotas.

– EU VOU CONTAR ATÉ TRÊS E SE VOCÊ NÃO TIVER SAÍDO, DEUS TE LIVRE DA MINHA IRA!!!

Andrea aproveitou pra contar junto:

– Um... Dois...

Edward abriu a porta antes do “três”. Com uma toalha enrolada na cintura, ele tinha o rosto coberto de creme de barbear.

– Estou ocupado, não sei se dá pra ver! – reclamou ele.

Antes que ele conseguisse fechar a porta de novo, Ellie o impediu, e Andrea ajudou, puxando o garoto pelo braço.

– Termina essa merda na pia da cozinha! – sugeriu Ellie, que rapidamente entrou no banheiro.

– Hei! – protestou Andrea.

– Foi mal, And, mas eu tô super atrasada...

– Você sempre está atrasada, garota. E eu cheguei primeiro!

Ellie a encarou, tentando pensar num argumento definitivo, mas não conseguiu. Por isso, antes que perdesse mais tempo, acabou fechando a porta na cara de Andrea, e girando a tranca antes que ela pudesse reagir.

– Ellie, eu vou matar você!!! – ameaçou Andrea.

– Serei rápida... – prometeu a garota.

– Foda-se! Eu cheguei primeiro! E vou contar de novo até três, viu? Um... Dois...

Ellie acabou abrindo a porta. Àquela altura, já estava nua, o que fez com que a expressão raivosa de Andrea sumisse de sua face em uma fração de segundo. Sem perceber o que se passava, Ellie falou:

– Me empresta aquele seu casaco marrom?

– Hein?

– Obrigada! – Ellie voltou a trancar a porta e em seguida ligou o chuveiro.

Derrotada, Andrea voltou para a cozinha. Ainda meio atônita, ela se assustou quando Edward lhe ofereceu uma caneca servida com o café que ela havia feito.

– Que foi? – Edward estranhou o semblante aéreo de Andrea.

– Aaam... Nada... – apanhou a caneca. – Obrigada.

– Ela abriu a porta nua? – arriscou o garoto.

Andrea riu, sem graça.

– Aaam... É.

Edward balançou a cabeça, passando a se deter no café.

– Com o tempo você se acostuma...

Andrea deu de ombros e passou a se concentrar no jornal do dia, embora estivesse atenta ao som da porta do banheiro. Consultando o relógio, viu que teria de se apressar, e amargou ter de passar por aquilo de novo.

Desde que ela, Ellie e Edward haviam decidido dividir um apartamento fora da universidade, Andrea passava por certos apuros, mas pelo menos suas contas estavam bem menos apertadas.

Lembrando do pedido da amiga, ela foi até o quarto separar o casaco marrom. Por costume, ela verificava os bolsos quando apanhava alguma peça que não usava frequentemente, e não se surpreendeu ao encontrar um ticket de cartão de crédito bastante amassado.

Muito mais por ter de matar tempo enquanto Ellie terminava o banho, Andrea leu o pequeno pedaço de papel. Era a conta de um restaurante onde estivera, meses antes, na companhia de Lena.

Depois de um suspiro longo, Andrea voltou a amassar o ticket e o arremessou no cesto de lixo que ficava ao lado da escrivaninha. Fazia dois meses que ela não tinha qualquer notícia da ex-namorada.

– Desistiu?

Andrea se voltou na direção da porta, por onde Ellie se precipitara, dessa vez enrolada na toalha.

– O quê?

– Desistiu do banheiro? Tá livre...

– Ah, sim. Tô indo. O casaco está aqui – apontou.

– Valeu mesmo. E... É melhor você ir de uma vez, não está atrasada? – disse Ellie.

Andrea por muito pouco não perdeu a paciência. E pra não ter de ser desagradável, simplesmente não respondeu.



No dia seguinte, por volta do meio dia, Andrea estava andando pelo campus quando reconheceu a melhor amiga cochilando à sombra de uma árvore.

– Ellie...?

– Quem? Ahn? Não fui eu!

Andrea riu. Era sempre engraçado acordar Ellie em lugares públicos. E isso já havia ocorrido uma porção de vezes.

– Acorda, garota!

– Caramba, capotei! – ela admitiu o óbvio.

– O que está fazendo aqui?

– Esperando a primeira aula acabar. É uma chatice sem fim e eu tenho de vir cedo porque o professor faz a chamada antes de qualquer coisa. Mas pelo menos ele não repara em quem se manda logo depois disso.

– E por que não voltou pra casa? – quis saber Andrea.

– Porque tenho prova no segundo período. Por falar nisso, que horas são?

Consultando o celular que trazia na mão, Andrea respondeu:

– Meio dia e três.

– PUTA QUE PARIU!

– Que horas era a sua prova?

– Dez... No máximo dez e quinze... Com muito choro, poderia ser às dez e meia, mas nunca, em dimensão alguma do universo, ao meio dia. Tô ferrada... Que merda...

Andrea tentou ajudar:

– A gente inventa uma desculpa e você faz a segunda chamada...

Ellie esfregou o rosto com as duas mãos.

– Não vai dar.

– Não vai me dizer que essa já era a segunda??

– Não.

– Ufa!

– Era a terceira.

Andrea deixou os ombros caírem, indignada.

– E como você conseguiu perder as duas primeiras? Aliás, como assim terceira? Não fazem terceira chamada nessa universidade!

– Fazem se o seu avô morrer no dia da primeira e a sua avó no dia da segunda.

– Ellie, você matou eles de novo? Já parou pra pensar que um dia os seus professores podem trocar informações e descobrir que você vem de uma família mutante onde os anciões têm sete vidas? E, pior, sete mortes!

– Ah, eu não sabia o que fazer! Marcaram a prova em cima da hora!

– Mas e hoje? Custava programar o despertador do celular? Aliás, como diabos você conseguiu dormir quatro horas debaixo dessa árvore?

– Eu acordei umas duas vezes quando o pessoal da Agronomia ficou zanzando por aqui.

– Matando aula como você?

– Não, estavam medindo a área topográfica do campus ou qualquer coisa assim. Minha turma também fez. Dois dias inteiros debaixo do sol anotando numerozinhos... Pelo amor de Deus, toda turma de ciências exatas ou naturais da universidade faz isso, será que ninguém até hoje conseguiu medir direito? Por que não chamam profissionais?

Andrea riu pra não chorar.

– Não lhe passa pela cabeça que eles medem isso por puro exercício?

– É... Pode ser...

– Eu avisei que você estaria um caco hoje... Por que ficou vendo aquele filme ridículo até tarde?

– Mas, And, era “Lagoa Azul”! Poxa vida, eu estou no Canadá há um ano e meio... Você sabe o quanto é difícil encontrar uma coisa aqui que me faça lembrar da minha infância?

Andrea largou sua mochila e se sentou ao lado da amiga, oferecendo-lhe o ombro.

– Nossa, um ano e meio... O máximo que eu fiquei sem voltar foram quatro meses, e mesmo assim pareceram eternos.

– Mas você tinha motivos para querer voltar – Ellie pontuou com cuidado.

– E você não tem?

– Ah, tem a minha avó... Mas ela se mudou. E os meus amigos, perdi contato... Eu seria uma completa estrangeira se voltasse pra lá agora. Não lembro mais nem em que rua a gente tava morando por último.

Andrea sorriu com simpatia.

– Isso não me surpreende nem um pouco.

Ellie a abraçou com força, ficando algum tempo em silêncio. Depois, acabou encerrando o assunto:

– Bom, sem chance de eu passar nessa cadeira de hoje, então não poderei voltar tão cedo. Melhor nem perder tempo pensando nisso.



* * *




Lena se despediu dos três assistentes ainda no fórum e partiu direto para casa. Seu dia tinha sido cheio, como poucos vinham sendo desde a contratação de Cristine, Marcus e Henry.

Além de ter passado a manhã num presídio, a advogada acompanhara duas audiências durante a tarde, e a segunda delas não lhe deixou nem um pouco satisfeita. Mais do que decepcionada, ela se sentia cansada só de pensar no trabalho que daria virar o jogo. Não que o cliente merecesse, é claro, mas os planos de Lena não incluíam perder uma causa justamente quando estava prestes a deixar a firma.

Aproximando-se da entrada, notou as luzes da sala acesas e ficou satisfeita ao constatar que isso significava que Kara tinha resolvido não ir à aula.

Cedo, durante o café, as duas tinham conversado sobre isso. Kara estava às voltas com um extenso trabalho da faculdade, que não sabia ao certo se conseguiria terminar no prazo.

Ao entrar em casa, Lena encontrou Kara sentada no chão da sala, com um caderno e alguns livros abertos sobre a mesa de centro e as costas apoiadas no sofá. Ela estava tão detida em suas anotações, que claramente não percebeu a chegada da advogada.

– Hei... Ralando ainda?

Kara ergueu os olhos, parando de escrever por alguns segundos.

– Oi... Como foi a audiência?

Lena largou a bolsa sobre o sofá, mas continuou em pé.

– Maldito cliente, levou duas advertências por mau comportamento. O juiz parecia louco para torcer o meu pescoço – contou.

Kara balançou a cabeça.

– Não entendo esses caras. Pagam uma fortuna para que os advogados livrem a cara deles e daí estragam tudo na hora H.

Lena suspirou.

– Se fossem espertos, em primeiro lugar não se deixariam apanhar.

Kara ficou encarando a amiga.

– Não! Se fossem espertos, em primeiro lugar se manteriam dentro da lei.

– Ah, tá bom, pirralha... – Lena fez um gesto qualquer e se virou, na direção do lavabo.

Quando ela voltou, Kara estava esperando pela continuidade da conversa.

– Eu não acredito que você continua pensando assim – disse a garota.

– Pois eu digo o mesmo.

– Nesse caso, você acha que as pessoas merecem ser punidas por sua burrice, e não por seus crimes?

A advogada ficou pensando naquela armadilha por alguns segundos.

– Já que resolvemos discutir, vou beber alguma coisa – anunciou. – Também quer?

– Sim, seria ótimo. Estou precisando relaxar disso aqui... – apontou para os livros abertos.

Lena foi até a cozinha, ficou cerca de um minuto por lá, depois serviu uma dose de uísque com gelo no bar e alcançou um copo de leite para Kara.

– Hei! – protestou a garota. – Estava pensando em outra coisa quando usei a palavra “relaxar”.

A advogada sorriu, tendo de se conter para não rir na cara de Kara.

– Eu pus duas gotinhas de vodca, mas não conte a ninguém, viu?

– Se não fosse respingar nos livros, eu atiraria essa droga na sua cara, espertinha.

Finalmente, Lena gargalhou. E não achou estranho que, apesar dos protestos, Kara tivesse ficado com o copo de leite, o qual foi bebendo aos poucos.

– Então... Você dizia...? – retomou ela.

– Dizia que você é uma canalha arrogante – respondeu Kara, com um sorriso inocente na face.

– Sei... Pelo menos eu não tento esconder isso de ninguém.

– Verdade. Mas se com isso você está tentando insinuar que eu faço isso, devo dizer que, num raro lapso, você está redondamente enganada, doutora.

– Ah é? O que disse ao seu professor no e-mail avisando que não iria à aula?

– Que estaria ocupada fazendo um trabalho da outra faculdade – respondeu na mesma hora. – Por quê? Achou que eu tinha inventado uma desculpa?

– Tudo bem, nessa você passou. Mas nós duas sabemos que você mente... Não exageradamente, claro, mas você mente sim, como qualquer pessoa normal.

– Lena, eu nunca disse que não sou capaz de mentir. A diferença é que eu meço as consequências disso, para mim e para os outros, antes de fazer.

– Ah, tá legal, então você está tentando me convencer de que existe uma diferença entre as mentiras que fazem mal e as totalmente inofensivas?

– É lógico que existe.

– Besteira – comentou Lena.

– Tudo bem, não precisa concordar comigo... – Kara fingiu voltar a se concentrar no trabalho.

– Kara, isso não é uma questão de ponto de vista. É um fato. Ninguém é incorruptível. As pessoas só têm limites diferentes.

– Eu sei disso – afirmou Kara, com veemência. – O que estou tentando colocar nessa sua cabeça dura é que o fato de existir corruptibilidade nos outros não nos obriga a corrompê-los de acordo com a nossa vontade.

– Eu não me sinto obrigada – defendeu-se Lena.

– Às vezes parece que sim. Parece que você se determina a isso, como se precisasse provar as suas teorias o tempo todo.

– Elas se provam por si.

– Errado!

– Quem tem uma clara necessidade de ficar provando coisas é você! – devolveu Lena.

– Ah, tá bom, Lena, agora senta lá e me deixa terminar esse trabalho.

– Essa é a sua desculpa para a falta de argumentos?

– Não, essa é a minha falta de tempo pra amolecer essa sua cabeça dura.

– Vou fingir que acreditei, mas é só porque eu vou precisar de você amanhã de tarde, então é bom que encerre esse trabalho de uma vez – alertou Lena.

Kara balançou a cabeça, derrotada, e finalmente voltou a se concentrar de verdade nos livros. Lena deixou a sala por cerca de quinze minutos, e quando voltou para apanhar mais uma dose de uísque, ouviu Kara dizer:

– ALELUIA! Acabei! – comemorou, atirando a caneta pra cima e fechando o caderno.

– Que bom...

– Não se preocupe, não vou pedir pra você dar uma revisada.

Lena sorriu simpaticamente e logo Kara avisou:

– Vou tomar um banho e depois arrumo essa bagunça aqui – levantou-se, alongando as costas.

– Deixa pra lá, não vou receber ninguém.

– Ok.

Na verdade, Lena pretendia dar uma conferida no trabalho, e o fez assim que Kara se foi para o quarto. Algum tempo depois, distraída, tomou um susto ao ouvir a campainha.

Estranhando o horário, espiou a câmera do portão, e muito mais por curiosidade do que por qualquer outra coisa, permitiu a entrada. Poucos segundos depois, outra campainha soou, dessa vez na porta.

– Sim? – abriu devagar.

– Ah, oi, doutora.

– É Lucy, não? – conferiu ela. – Algum problema no escritório?

– Não... Nenhum – respondeu a outra, que embora estivesse nervosa, sorria. – Será que... Eu posso... Entrar?

Lena puniu-se mentalmente pela falta de tato e saiu do caminho da secretária, fechando a porta assim que Lucy entrou.

– Fique à vontade. Quer sentar? Aceita alguma coisa?

– Não... Não... Estou bem – garantiu a secretária.

Com o olhar cada vez mais curioso, Lena prosseguiu:

– Então...?

Antes que Lucy pudesse responder, Lena ouviu os passos de Kara as suas costas. Rapidamente, a estagiária se aproximou de Lucy e lhe roubou um beijo leve, nos lábios.

– Oi linda, desculpa, achei que fosse sair do banho antes de você chegar... – explicou.

Lucy ofereceu um sorriso aberto e maravilhoso para a namorada, e dali em diante, foi praticamente como se Lena nem estivesse entre elas. Kara ainda se incumbiu da formalidade:

– Acho que preciso reapresentar as duas, né? Bia, essa é a amiga com quem eu moro. E, Lena, essa é minha namorada...



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