A Morte é Vermelha

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  Para os campos eu olhava. No céu meus olhos se perdiam visualizando o formato das nuvens. Lembro-me de que também cheguei a ver um incêndio uma vez, mas tudo era igual. O vento era diferente, o calor nem se comparava, mas os tons eram os mesmos. Não importava para onde eu olhava, o preto e branco me perseguiam.

  Desde pequeno minha mãe dizia "Isso é normal", ela fazia de tudo para eu não ver a beleza do mundo real. Ela pensava que esse era o melhor para mim, afinal aqueles que não portam asas não devem almejar um dia voar, do contrário sofrerão uma queda que não destruirá apenas os seus sonhos como também sua auto-estima.

  Jamais esqueci minha irmãzinha, Nanda. Em contra partida com minha mãe ela me ajudava a aprender as cores. Ela só tinha 10 anos, mas para mim isso não era um problema, pois só deixava seus ensinamentos mais do que fofos, puros. Ela usava a linguagem do coração, mostrando-me que as cores eram mais do que simples adjetivos, elas não só caracterizavam como também definiam e eram protagonistas.

  Em um dos dias em que eu e minha irmãzinha brincávamos no quintal, ela começou a me ensinar. Com sua pequena mão ela apontou para um grande prédio ao longe e disse "Imagine-se caindo de lá". Eu realmente me imaginei e meu corpo tremulou de medo. Nan então apontou para mim "O medo é amarelo" afirmou ela. Sem hesitação retruquei "Mas nós não podemos ver o medo, então ele não tem cor". Mas ela respondeu "Se você não pode ver, outros podem. A visão não é a prova de que existe. E você deveria saber disso, irmãozinho".

  Com aquelas palavras, eu entendi oque ela queria dizer. Talvez eu sempre a subestimasse demais por ser mais nova, mas ela sempre me desbancava com argumentos tão fantásticos que me faziam duvidar de que ela era uma criança. Foi com ela que eu aprendi o valor das cores. Através de suas palavras desconcertadas. Uma vez cheguei a surpreendê-la, delicadamente a puxei pelo braço e a abracei, afagando sua cabeça suavemente com minha mão entre seus cabelos macios. Foi naquele dia que eu compreendi tudo e resolvi lhe mostrar dizendo "A ternura é rosa" e ela respondeu-me "Seus olhos podem se limitar apenas ao preto e branco, mas seu coração é capaz de ver o arco-íris".

  Mas para a minha infelicidade, não demorou um mês para o meu branco ser pintado de vermelho, um vermelho tão forte que até mesmo eu pude ver...

  Nan e eu sempre íamos para a escola juntos, ela vivia me desafiando a acertar as cores do semáforo. Mal sabia ela que eu já havia aprendido a sequência, no entanto uma vez dei com os murros na água, pois a ordem estava invertida, apesar das cores serem as mesmas. Infelizmente, aquele não foi o ocorrido mais triste daquele dia. No pátio da escola eu ficava esperando minha irmãzinha para irmos embora juntos. Mas naquele dia Nan estava demorando demais. Fui até a sala de minha irmã, e ao chegar lá vi que sua turma já havia sido liberada e o único que se encontrava na sala era o professor Ermínio.

  Me aproximei do professor de história e lhe perguntei sobre o paradeiro de Nan, na esperança dela ter dito algo antes de sair, como por exemplo aonde ela iria. Mas para o meu infortúnio ele respondeu que ela saiu normalmente com os outros alunos. Pensei em ir para casa e ver se ela tinha ido sem mim, mas Nan jamais faria isso sem me avisar, e de qualquer forma ela não tinha as chaves de casa.

  Resolvi voltar para o pátio. Já era bem tarde então não havia alunos do fundamental 1 no corredor. Porém essa calmaria foi drasticamente tirada de mim enquanto eu descia as escadas. No fim da escadaria estava o corpo de minha irmãzinha estirado sobre o vermelho. O choque foi tão grande que de alguma forma eu comecei a ver aquela cor. Corri para socorrê-la.

  Entre gritos de euforia eu tentava reanima-la. Quanto mais eu a tocava mais aquele vermelho sufocante se espalhava. Em seu corpo, em minhas mãos. Ao contrário de seus lábios que de um vermelho tão lindo transformava-se em branco. Completamente pálido.

  Logo alguns professores e alunos chegaram. Alguns ligavam para a ambulância ou a polícia, outros tentavam me afastar de Nan dizendo "ela precisa de espaço para respirar". A quantidade de sons dispersos naquela hora eram agonizantes, mas o único sentido o qual não conseguia ignorar era a visão. Tudo ao redor escurecia. Seu corpo empalidecia. E o tom rubro abaixo de minha irmã só aumentava.

  Dois professores me seguravam tentando me tirar do local mas eu resistia e gritava que ela era minha irmã e tinha de estar ao seu lado. Conforme nós nos separávamos meu coração se tornava mais e mais incolor, e quando o muro da morte, de seus batimentos, do vermelho, fechou nossa travessia eu fiquei descolorido. Quando ouvi murmúrios de que Nan havia partido minhas forças se foram. Me joguei ao chão, de joelhos. Os médicos chegaram e começaram a ajeita-la na maca, e a levá-la as pressas. Nem mesmo as lágrimas que escorriam em meu rosto eram suficientes para cicatrizar as queimaduras que o quente e dolorido carmesim deixou em mim...

  A partir daquele dia meu mundo não era mais apenas preto e branco, ele também estava tingido de vermelho. Foi neste mundo triste e sombrio que cresci. Assombrado por aquele escarlate que jamais esqueci. O tempo pode ter passado, mas eu jamais esqueci minha promessa de encontrar quem derramou aquele vermelho em meus olhos. Aquele que fechou nossa travessia. Aquele que descoloriu meu coração.

Descolorido - Meu Mundo Sem CorWhere stories live. Discover now