PARTE I

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O sobrado amarelo mantinha-se há quase um século solitário no pampa. Era o elemento de destaque no horizonte verde, única companhia da laguna da qual uma neblina matinal invariavelmente surgia nas águas sempre frias, era uma verdade estabelecida tanto quanto a de que o sol nasceria no dia seguinte. Naquele dia o vapor engolia a casa conferindo-lhe uma atmosfera etérea e assustadora, Ana não sabia qual sensação lhe pesava mais.

No primeiro momento que avistou a construção ao longe um sentimento que não soube nominar instalou-se – nunca foi boa em defini-los de qualquer forma – fazendo-a segurar o volante com mais força conforme se aproximava com o carro. Felicidade, saudade, medo, angústia, melancolia? Era um lugar estranho e familiar quase na mesma medida.

A casa possuía raízes profundas demais em sua mente, isso não podia ser negado. Os primeiros verões da sua vida, caçar vaga-lumes com o pai, aprender a nadar com a mãe e brincar com a irmã na casinha de madeira que o tempo já destruíra. Havia lembranças felizes sem dúvida, poderia até dizer que o sítio era sua pequena terra do nunca onde os dias eram longos e tinha seus pais todinhos para si, além disso, nada de escola. Entretanto, também existia muita dúvida e aquele desconforto quando algo está errado, tão pequeno que é impossível saber de que se trata, mas perturba a ordem.

Perdida em seus pensamentos mal lembrou-se que já passava dos 40 anos, que crescera, fizera faculdade, casara-se e havia sido mãe duas vezes, inclusive que seu marido e filho estavam no carro, somente sentiu-se aquela menina novamente que estava indo para uma aventura de férias ou então seria a presa direto para a boca do predador.

Dirigiu pela lateral devagar para analisar as marcas do tempo. O imóvel não havia ficado abandonado totalmente, seus pais frequentaram sozinhos depois que pararam de levá-la, mesmo que não dormissem mais lá dedicavam-se a preservá-lo. Depois da morte deles há três anos, Ana tornou-se a proprietária responsável pelas contas e manutenção, vivia confortável o suficiente para poder contratar quem limpasse e reparasse eventualmente sem precisar colocar os pés na propriedade, pessoalmente não voltava há quase 30 anos. Não tinha motivos específicos para isso, só essa estranha sensação de desejo e alerta.

Estacionou no galpão aos fundos da casa como lembrava que seu pai fazia.

- É sério que eu vou ter que vamos passar as férias nesse fim de mundo? Não deve nem ter 3G. – Lucas, que passara a maior parte da viagem dormindo, reclamou no banco traseiro.

- Sabemos que não é as suas férias dos sonhos, mas sendo realistas é uma ótima opção. A pandemia ainda não acabou e pelo menos podemos viajar para algum lugar, não quero ter essa conversa de novo com você. – Marcos respondeu descendo do carro e abrindo a porta do filho.

- Eu preferiria ficar em casa.

- Vai ser bom sair do seu quarto e se conectar com o mundo fora dele. Trouxemos vários tabuleiros de jogos e coisas para aproveitar em família. – Ana deu ênfase nas últimas palavras, enquanto soltava o cinto e descia. – E da última vez que fiquei sabendo não pegava sinal de telefone aqui mesmo, mas você pode ligar para os seus amigos do fixo.

- Tabuleiros? – Ele riu.

- Em família. – Ela reforçou.

- Eu não posso aproveitar em família no apartamento da minha irmã? Ela é da família.

- A Roberta só está resolvendo algumas coisas da faculdade e em poucos dias vai estar conosco, já combinamos isso, você sabe então colabora. – A mãe ficou parada de pé ao lado do carro observando aquele cenário da sua infância e reconstruindo-o na mente, preenchendo as lacunas que a memória perdeu. O trapiche na laguna que agora tinha partes faltando, as flores nas margens, as persianas desbotadas.

Laguna • Vencedor Terror de Verão Where stories live. Discover now