A Velha Fabrica

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Na varanda iluminada pelo sol um cachorro cochilava profundamente, próximo a ele havia uma poltrona onde duas pernas trajando uma calça preta estavam esticadas, mãos finas estavam enlaçadas sobre um ventre magro, a camisa branca estava desalinhada e o fraque estendido ao lado. Suspirando longamente e espiando o céu azul, um homem de olhar melancólico e cinzento já não sabia ao certo quanto tempo estivera ali entregue aos seus mais profundos pensamentos, embora todos desordenados e o peito inflado em dor, mas ainda tentando alguma organização.

A cabeleira desgrenhada e castanha lhe encobria parte da fronte, jogada ao chão estava sua cartola, o castão enganchado no alto da poltrona fazia a bengala balançar timidamente, ao fundo uma porta semiaberta denunciava a existência de um ateliê, cores eram perceptíveis pela fresta, um profundo pesar estagnava o homem naquela posição, os lábios miúdos murmuravam coisas vez ou outra, acabaria por permanecer ali até que o crepúsculo viesse a bailar lentamente, sorrateiramente, se apossando de tudo o que a luz do sol tocava, para então encobrir o mundo em trevas! Mas, a passagem de um dirigível fez com que o homem despertasse num sobressalto brusco, despertando o cachorro que olhou os arredores confuso, o canino nada notou de anormal e retomou seu sono. Porém, uma ideia passara pela mente daquele homem, a principio de teor angustiante, seus olhos recobraram certa luminosidade e perseguiram o dirigível por um longo trecho, logo recomeçou a alinhar toda sua vestimenta de tons escuros e cinzas e seguiu para o atelier.

Naquele espaço onde as cores eram a voz de sua alma, espiou seu ultimo trabalho, aquele tom vivamente negro, que dava intensa realidade ao longo cabelo ondulado de uma figura feminina cujos retoques carmesins nos lábios cerrados pareciam emanar uma forte sensação de clamar aos céus pela vida! Os lábios não poderiam exprimir tais palavras, era um fato doloroso, mas nos olhos que estivera trabalhando incansavelmente por noites afora, sim, conseguia ler intensas mensagens de tristeza ou talvez acreditasse que pudesse o fazer, de qualquer forma, aquela figura em trajes opulentos não poderia perecer no mundo real!

O homem ganhou uma rua pavimentada por onde elegantes homens caminhavam com seus trajes bem alinhados, carruagens passavam em velocidade moderada e algumas senhoritas acenavam para o pintor, logo, abriam seus leques e de feições ocultas cochichavam sobre o desleixe daquele sobrado de janelas quase apodrecendo e telhado encardido!

Tomando um rumo que o conduzia para um calçadão onde salgueiros frondosos se enfileiravam, o pintor passou por toalhas fartas de quitutes onde jovens faziam piquenique e seguindo acelerado acabou por ignorar alguns solistas que arrebatavam a curiosidade de jovens apaixonadas. Prontamente ganhou uma avenida agitada e na primeira oportunidade pendurou em um bonde, sacou uma moeda do bolso do paletó e procurou um assento, sentou-se inquieto e ficou espiando os jornais estendidos a frente de figuras obesas e magricelas, noticias de toda ordem!

Um senhor calvo de rosto redondo e enrugado contemplava o pintor, estava sentado em uma cadeira a analisar alguns papeis sobre sua uma mesa iluminada pela luz solar que jorrava profusamente da janela escancarada, parecia aborrecido com a visita inesperada...

"O que posso fazer por você hoje, meu caro Isack?"  

O pintor que tinha certa palidez no rosto fino iniciou nervoso, pronunciando as palavras com calma:

"O Senhor é um renomado cientista, eu estava pensando hoje mais cedo, se podemos construir maquinas que estão ganhando os céus, então..."

"Então de alguma forma possamos curar doenças que sentenciam pessoas a morte, certo? Meu amigo, construir uma maquina que possa voar é algo que está dentro de nossas possibilidades, você pode fazer testes, errar quantas vezes possíveis e um dia acertar, entende? Não é o mesmo com seres humanos, você não pode abrir uma pessoa inúmeras vezes para fazer testes, cortar artérias, retirar o coração para investigar em uma terça e devolver em um sábado!". E visivelmente aborrecido o velho homem de colete e baixa estatura se levantou e prosseguiu argumentando irritado "Eu sou um cientista! Eu tenho estudado por anos para ajudar o mundo a progredir, eu não sou um médico! Não sou um feiticeiro! Se quer um milagre, por que não procura a pedra filosofal? Converse com um bom alquimista, na Vila Industrial tem muitos, talvez eles saibam como salvar pessoas da morte!"

O Pintor desviou o olhar para algumas pinturas bucólicas na parede ao fundo, uma sombra pairou sobre seu semblante e sem cerimonias se retirou, aquela fora a decima quarta visita que fizera ao cientista de nome Normando. O desespero consumia Isack, sua irmã mais nova estava em um hospital a beira da morte, os médicos diziam que nada poderia ser feito, era apenas uma questão de tempo. E a aflição lançava os olhos do pintor para varias direções, talvez a ciência pudesse salvar a pequenina, era o que lhe parecia mais sensato, então procurava desesperadamente os melhores que figuravam nos jornais, no entanto, só ouvia argumentos que lhe dilaceravam o peito.

Caminhando sem rumo, seus olhos deixaram de contemplar as largas fachadas dos prédios requintados da região central, seu olfato aos poucos não sentia mais as fragrâncias tentadoras dos boticários, toda a pujança de cores, odores e sons das ruas principais foram dando espaço para sussurros, velhos casebres e figuras furtivas, cães sarnentos e poças de água suja onde acabou por pisar em uma e despertar!

Isack parou, suspirou e olhou seu pé atolado na poça, logo observou o ambiente sombrio e decadente que o cercava, havia se afastado do centro da cidade e não percebeu, os pensamentos ainda estavam em desordem e isto estava lhe afetando na percepção do tempo, sacou o relógio do bolso e instintivamente o guardou... Sentiu que algo o observava de algum lugar, ajeitou a cartola e moveu-se lentamente pela calçada imunda, mulheres de aparência duvidosa passaram o observando...

De tudo o que observou, um local lhe chamou a atenção, avançou para uma direção onde se encontrava um prédio em ruinas, com uma placa de ferro que anunciava: "Manequins Charlote". Parecia se tratar de uma fabrica abandonada, ou não, a porta principal estava entreaberta, certamente algum vagabundo ocupava o local como moradia, ou mais de um. Em verdade o local chamou a atenção de Isack e um certo sentimento infantil de coragem lhe bateu no peito, olhou os arredores e se esgueirou para dentro.

De uma alta janela daquela velha fabrica, um vulto se moveu assim que Isack adentrou...

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⏰ Last updated: May 03, 2021 ⏰

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