10 Mil Troikas

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          O velho psicanalista já trancava o seu escritório quando alguém mascarado apareceu às suas costas.

          Ele ameaçou levantar as mãos como se rendesse...

          O estranho então disse que tentou agendar a consulta, mas não encontrou ninguém na recepção, nem lhe atenderam as ligações feitas antes.

          A recepcionista fora despedida ano passado. O telefone estava cortado.

          Aquele homem também contou que possuía quase meio bilhão de dólares, e que precisava da ajuda do analista para "resgatar o dinheiro perdido dentro de sua cabeça".

          O doutor parou por alguns segundos e abaixou as vistas para olhar as horas no seu relógio trincado. Se aquele sujeito fosse um bandido já teria o rendido há tempos com uma pistola encostada nas costelas ou uma faca pressionando a garganta; ele sabia como funcionava a abordagem daquele tipo de gente, pois já havia sido roubado muitas vezes ali mesmo diante daquela porta, ou atrás dela. Sendo assim o velho meteu de novo a chave na fechadura, destrancou todos os três cadeados extras, e avisou-lhe que poderia abrir uma exceção.

          O caso soava muito interessante. Inédito!

                                                                                        . . .

          Assim que os dois entraram, o profissional foi juntar e guardar os protestos, os boletos e as cartas de despejo que estavam espalhados em sua mesa; também jogou dentro da gaveta a antiga calculadora amarelada. Se aquele cliente tivesse entrado vendado naquela sala e lhe fosse depois tirado o pano e perguntado o que ela era, ele certamente diria que aquilo se tratava de um escritório de contabilidade, um almoxarifado ou outra coisa qualquer, nunca um ambiente dedicado à psicologia. Depois de ter organizado minimamente o lugar, ele indagou ao indivíduo de máscara: - Sente-se bem ali, amigo! Qual é o seu nome?

          O homem ainda sem nome atravessava o recinto repleto por pilhas de livros, jornais, revistas e muitas outras coisas obsoletas. Passava agora diante de um aquário enorme, curvou-se curioso para ver os peixes, mas não encontrou nenhum; só conseguiu enxergar pedras, galhos e algas no meio da água turva e esverdeada. Ele então se sentou e foi se ajeitando com certa dificuldade no divã brega de estampa vintage: - Horácio Alberto. Mas pode me chamar de Albertinho. Todo mundo me chama assim desde pequeno, e pra falar a verdade eu odeio o meu próprio nome, doutor René...

Comportamento típico - leve - de autoflagelo*

          Albertino já sabia o nome do dono da clínica porque era o mesmo que compunha a placa de neon apagada lá de fora. E ele descobriu a origem de seu desconforto no divã: era um cinzeiro de plástico barato encrustado abaixo do fino estofado do móvel; retirou-o e colocou sobre a mesa.

          - Sua vacinação está atualizada? - perguntou o psicanalista. Horácio levantou o punho direito com a mão espalmada em sua direção: - Se duvida é só me escanear, senhor.

          O psicanalista ajustou os óculos na cara: - Então já pode retirar a máscara. Só perguntei porque tem-se noticiado que muitos estão conseguindo burlar as enfermeiras-voadoras nas ruas. Quando não as roubam.

          Fazia muito calor dentro da sala, existia um ventilador de teto, mas ele não girava. O doutor quis saber se o homem gostaria de um copo de água. Albertinho retirou o equipamento de proteção facial e balançou a cabeça afirmando que sim, contou que tinha vindo pedalando desde sua casa; cruzou muitos quarteirões, quase sempre subida.

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