Meia-noite

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Eu me remexo na cama com inquietude

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Eu me remexo na cama com inquietude.
Tinha acabado de me embrulhar nos cálidos lençóis e já estava prestes a descansar quando sinto o arrepio.

É uma sensação agoniante. Um chamado do além, uma voz silenciosa, uma sensação. Hoje não. Por favor, hoje não. Eu só quero dormir. Só descansar. Ter paz. Ser uma pessoa normal. Tenho aula amanhã, não posso...

Mas o arrepio não dá trégua e continua. Não importa a posição que eu tente, ele persiste, atormentando minha alma.

Por fim, eu me rendo e levanto da cama. Encaro o frio e escuro quarto sentindo a sensação me envolver, seus sussurros incessantes têm enfim a minha atenção. As silhuetas se movem no ar como alucinações fantasmagóricas, as vozes se fazem escutar como se o quarto estivesse com mais alguém dentro dele. Agora não tenho como bloquear os sinais. Suspirando, eu ligo a lanterna do celular e pego o caderno e a caneta que deixo sempre ao lado da cama. O trabalho me chama.

A silhueta principal toma mais forma, dançando no ar à minha frente. Era uma garota jovem. Talvez 16, 18 anos. Morena, pele acobreada. Olhos castanhos rodeados por olheiras. Olhava atentamente para a janela de um quarto diferente do meu, que desvanecia gradualmente para dar lugar a um apartamento pequeno e cheio de goteiras no teto.

A janela enferrujada, dando uma visão privilegiada daquela noite quente, estava há alguns metros acima da rua. Nuvens grossas e cinzentas ocupavam o céu lá fora, avisando uma tempestade.

A garota estava inquieta. Andava de um lado para outro, mexia as mãos, os olhos varriam o ambiente, sem foco. Parecia esperar alguma coisa. No fundo, torcia para que nada aparecesse... Mas ela sabia que seu desejo não se realizaria.

Algo passou veloz pela janela lá fora, um vulto que fez a jovem paralisar, alerta. Ela se moveu para perto da cama e só então vi o facão ao lado do móvel. Apertou o objeto com avidez, os nós dos dedos ficando brancos.

Eu conseguia sentir seu medo, sua apreensão. Com concentração, captei memórias flutuando ao redor dela, breves cenas da garota entrando em uma rua escura e sem asfalto ao lado de um matagal. Em meio ao mato, olhos sombrios a observavam, uma silhueta esquelética oculta em meio às plantas, exalando uma aura de puro mal e de morte.

A coisa estava lá fora agora, espreitando a casa da moça como sempre fazia à noite. Enquanto não aparecia, seu espectro fazia o papel de atormentá-la e parecia que apenas ela conseguia ver as assombrações.

Por várias vezes, a jovem tinha conseguido flagrar a sombra dele, uma visagem esquelética e cinzenta que se aproximava, atacava pessoas e fugia em seguida, seus gritos pavorosos ecoando pelas ruas vazias à noite. As vítimas, assustadas com o som que vinha de lugar nenhum, logo ficavam fracas ou doentes de forma misteriosa. O ser em si, porém, só aparecia completamente àquela hora, meia-noite. Antes, apenas rondava a presa à distância, perseguindo-a sem se aproximar muito ou dar um ataque definitivo. Parecia gostar do medo nos olhos da garota, da tensão que a envolvia toda noite quando ficava na janela dela ameaçando invadir, ou quando a seguia como um assaltante ameaçando matá-la.

A jovem não sabia o que ele queria com ela. O que a aterrorizava mesmo era não saber ao certo qual seria seu fim se fosse alcançada, o que seria dela se o ser decomposto e ressecado se cansasse desse jogo de gato e rato e parasse de enrolar.

Fizera um círculo de sal grosso e espalhara velas e símbolos sagrados pelo quarto como pôde na esperança de repeli-lo. O monstro, porém, mantinha sua posição do lado de fora, só esperando que sua presa saísse de seu círculo de proteção por um único instante que fosse para pegá-la - ou talvez só estivesse aguardando que ela dormisse para atacá-la e provar que suas precauções e amuletos eram inúteis esse tempo todo.

A imagem começa a desvanecer. Pisco. Tento manter a conexão. Agora que eu já estou acordada, quero saber o final disso. Não vou perder meu sono por um final inconclusivo, apesar de saber como isso termina... Como sempre termina.

As cenas voltam, porém confusas e recortadas. Os sentimentos estão intensos e monotemáticos. Semanas se passaram nisso, a jovem estava visivelmente drenada por essa situação, pela insegurança constante.

De repente, o fluxo para. É um cenário parecido com o do começo dessa visão, mas diferente. A garota está muito magra, suas olheiras estão enormes, sua pele acobreada tinha perdido o viço, seus olhos castanhos exibiam profundo cansaço. Ainda segura o facão, mas de um jeito frouxo, com os ombros caídos.

Subitamente um vento forte passa pela janela, apagando as velas, assoprando o sal e derrubando as cruzes e as proteções das paredes. Em um único e abismal pulo, a criatura sobe até a janela, invadindo o quarto. A jovem gritou, mas não saiu som algum além de um gemido rouco. Tentou chamar ajuda, mas a voz não foi capaz de exprimir uma única sílaba. Um silêncio sufocante e sobrenatural tinha tomado o lugar, matando todo som.

Ah, eu perdi a conexão.

Quando a visão volta a se mostrar ao meu redor, vejo o quarto bagunçado. Em um canto dele, a garota, acuada, segurava o cabo do facão, que jazia atravessando o peito do morto-vivo decrépito, sem qualquer efeito.

O monstro era um ser humano, ou pelo menos tinha sido um. Seu corpo decomposto empesteava o ar com o cheiro de podridão. Sua pele azulada estava grudada nos ossos, os buracos onde restavam seus olhos decompostos eram escuros como o breu e, junto com os restos de uma boca, formavam uma expressão maligna de prazer. A assombração dele, separada do corpo, vagava pelo quarto, sua simples presença fazendo tudo enferrujar, se desfazer, rachar.

O espectro então saiu pela janela soltando gritos altos e assombrosos pelas ruas, pronto para atormentar o sono das pessoas ou atazanar bêbados desavisados que permaneciam zanzando àquela hora.

O monstro, porém, permaneceu onde estava, permitindo ser atravessado pelo facão para se aproximar mais da garota. Seu fedor já era suficiente para fazê-la desmaiar, mas o medo gelado em suas veias a mantinha firme. Ele ergueu suas mãos esqueléticas e descarnadas para tocar os braços dela e a garota finalmente conseguiu soltar um grito alto de desespero.

A criatura parou, entortou um pouco a cabeça e então riu, um som gutural e seco deslizando pela garganta áspera. Seu hálito morto empesteou o quarto e a jovem sentiu seu corpo enfraquecer apesar de seu coração bater a mil de puro pânico. Os dedos ossudos agarraram o pescoço da jovem com voracidade, fazendo o sangue fugir da face pávida e a pernas começarem a tremer. O lugar onde o monstro a tocava ardia como se queimado por brasas ou como atacado por inúmeros marimbondos.

Após sugar o bastante da energia vital da garota, o Corpo Seco recuou, dando um sorriso satisfeito. Ele então saltou para fora do quarto, encontrando-se com seu espírito, o Bradador, e indo atrás da próxima presa. O medo genuíno era sempre o mais precioso para criaturas como ele. Ver suas vítimas gritando de pavor gerava um sentimento muito próximo do prazer, que ele sentiria se tivesse alma. O trabalho para arquitetar tudo isso e exauri-las ao extremo era grande, mas valia cada segundo.

Depois desse encontro fatal, a garota nunca mais se recuperou. Tinha crises de pânico frequentemente e seu corpo estava para sempre adoecido. Ninguém nunca acreditou em sua história sobre a aparição que a atacara, mas também nunca souberam explicar o que causou seu adoecimento súbito. Ela morreu desacreditada meses depois disso.

Bem, garota da história, se é que isso serve de consolo, eu acredito em você. Pode descansar em paz agora ao saber que alguém sabe o que houve.

Quanto a mim, agora posso enfim voltar a dormir, se é que eu vá conseguir fazer isso cedo o bastante para ter o sono necessário. Provavelmente não vou conseguir ficar bem acordada para aula amanhã. Suspiro, mas sei que são ossos do ofício.

Para sempre vou me lembrar de ler contratos até o final antes de aceitar os termos. Ou de chamar um advogado se o contrato parece meio estranho, com "cláusulas vitalícias" e "jornada de trabalho flexível". Ou basta só não fazer acordos com seres sobrenaturais.

Então, relatando meu eterno arrependimento, eu consigo enfim me aconchegar nas cobertas.

Amanhã será um novo dia.

Crônicas de Serra BaixaOnde histórias criam vida. Descubra agora