O colhedor de sonhos

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"Florzinha, você sonhou?" Era o que  ele me perguntava todas as manhãs quando eu estava a varrer a calçada de Dona Tereza. Para não deixar o velho triste, inventava lá um ou dois animais no meio de algum sonho pitoresco que nunca existiu.

E lá se ia o velho ladeira abaixo, procurar seu Joaquim para fazer sua fezinha matutina.

Eu fitava de longe aquela cabecinha branca, em passos vagarosos com seu chapéu de feltro, assoviando e mancando da perna bichada.
Quando ele voltava, lá por volta do almoço, seu humor dependia unicamente do meu falso sonho. Se acertava, era um "florzinha, lhe trouxe um quindim". Mas se o sonho não prestasse, o velho se desembestava ladeira acima, sem olhar para os lados. Às vezes eu o ouvia resmungar alguns palavrões, mas não tomava para mim, o velho era temperamental.

Depois de um tempo colhendo sonhos, percebendo que mais perdia do que ganhava, as vindas do velho começaram a ser mais espaçadas, foi aí que me surgiu a ideia, elaborar meus sonhos, um dia antes, assim a veracidade aguçaria seu instinto de jogador.
Pois duas semanas fiquei a varrer a calçada e quando já estava desistindo, aponta o velho ladeira abaixo, como se nunca tivesse parado de vir.
Dei um salto na rua, travando sua passagem.

- Seu Jorge, por onde andou que não lhe vi? Tenho um sonho dos bons para lhe contar.
- Pois não precisa, florzinha. Seus sonhos não rendem no bicho, além do mais, Dona Iolanda tem me dado previsões ótimas, me rendeu um bom dinheiro essas semanas.
Indignada com a ingratidão do velho, me coloquei a falar, como ousaria me fazer perder tantas noites inventando sonhos para depois desprezá-los assim?
- Pois senhor Jorge, se o senhor é tão bom assim na jogatina, por que não joga com seus próprios sonhos? Vem me atormentar aqui por anos, eu que lhe dei tanto dinheiro, agora desfaz das minhas previsões.
- E velho sonha, minha filha? Eu não tenho esse privilégio, isso é coisa de jovem. Façamos assim então, hoje eu pego seu sonho, amanhã o de Iolanda, quem me render mais, fica a cargo de me repassar sempre. Combinado?

Com meu orgulho ferido, aceitei o pacto e logo lhe contei o sonho planejado na noite anterior.
Seu Jorge saiu satisfeito rumo ao seu Joaquim e eu fiquei ali na calçada matutando. Para vencer Dona Iolanda, eu teria que sonhar de verdade.

Estava eu lá, a postos no fogão de Dona Teresa, quando avisto o velho subindo a ladeira. Saio apressada já perguntando o resultado.
- Deu borboleta, florzinha! Se continuar a sonhar bem, vou ser obrigado a deixar de lado Dona Iolanda.

Saí satisfeita, a motivação de ter um sonho verdadeiro estava renovada e eu já sabia o que fazer.
Fui para casa disposta a ler, assistir ao canal do boi e até ouvir sertanejo se preciso. Li "A revolução dos bichos" por três horas seguidas. Essa noite eu sonharia com um bicho de fazenda, certeza!

No terceiro dia, desce Seu Jorge a ladeira, eu já estava a postos esperando para contar meu sonho, dessa vez real.
- Seu Jorge, sonhei com porco, ele falava e estava armando uma revolução contra os humanos.
- Que sonho diferente, florzinha! Porco ditador é bem estanho, não é?! Tenho que lhe avisar que Dona Iolanda  me rendeu um dinheirão ontem. Vai ser difícil essa escolha.
Saí meio irritada mas na esperança de que esse sonho verdadeiro me traria sorte.

Duas semanas nesse vai e vem, ganhei seis mas perdi oito para Dona Iolanda e logo no último dia do experimento, Seu Jorge vem me dar a triste notícia.
- Dona Iolanda sonhou melhor, vou ter que ficar com as previsões dela.
Eu nada disse, saí furiosa pra dentro da casa de Tereza, certa de que Iolanda iria ouvir umas boas. Li um livro inteirinho, aprendi até que Guepardo era um animal veloz, tudo isso vendo documentário, e olha que nunca nem tinha ouvido falar desse bicho.

Naquele mesmo dia, enquanto passava pela rua, vi de relance a velha Iolanda na mercearia. A raiva de perdedora me fez esquecer os bons modos e parti mercearia adentro, já esbravejando contra Dona Iolanda.
- Velha intrigueira, ordinária! Se bandidou pro lado do Seu Jorge pra me roubar as previsões, espero que fique contente com aquele velho fedorento a lhe importunar todos os dias!
- E eu lá forneço sonho pra alguém? Você está variando, menina! Eu mal dou bom dia para o Senhor Jorge, quem dirá ficar ajudando o velho a se afundar em jogo do bicho. Eu sou cristã!

Dito isso, a ficha caiu enquanto minha cara queimava de vergonha. O pilantra do velho inventou toda  essa história de Iolanda só para me fazer querer sonhar.
Passei direto pela rua e fui para a casa, queimando de ódio, fui dormir esperando que o velho aparecesse no dia seguinte para que eu lhe contasse umas boas.
Sonhei a noite toda com patos, de todas as cores, rodando em minha cabeça. Esse sonho eu guardaria para a vingança matutina.

Ao amanhecer, desci a ladeira e passei direto pela casa de Dona Tereza, rumo ao bicheiro, ia esperar o velho na porta, só para ver sua cara de pau quando desmascarado. Antes disso, entrei e falei ao Seu Joaquim.
- Cem reais no pato!
Me sentei a porta e logo avistei o chapéu de feltro rebolando na cabeça do velho safado.

Muito bonito, seu velhaco, me fazendo sonhar para nada, nem disputa tinha!
O velho desatou a rir, me dizendo:
- Para quem inventa sonho de livro, não tinha que estar brava com uma brincadeirinha.
Não é que o velho conhecia George Owell?! Sem ter o que falar, fui para Dona Tereza, esperar a hora do almoço para pegar o resultado do bicho.

Na hora da soneca de Tereza, saí de fininho rumo ao bicheiro, encontrei Seu Jorge sentado em um banco do lado de fora, cabeça baixa, olhar triste.
- Veio rir de mim? Perguntou.
- O que foi que aconteceu? Perguntei quase sentindo pena.
- Apostei cem reais na galinha e saiu pato.

Ao ouvir essas palavras, dei um pulo e entrei direto para recolher o prêmio. Saí de lá com um sorriso de orelha a orelha, exibindo as diversas notas de cinquenta. Seu Jorge ao ver a cena, logo ligou nome à pessoa e já veio esbravejando.

- Menina desalmada! Não vê que perdi o dinheiro de pagar a conta de luz por sua culpa?! E onde foi que conseguiu o sonho certeiro?
- Uai, eu sonhei! Disse, rindo da infelicidade do velho.
- Como pôde ter feito isso com um velho doente?
- Seu Jorge, não é por mal, mas galinha que acompanha pato, morre afogada.
E foi assim, contando dinheiro e matando o velho de raiva que comecei a sonhar todas as noites.

Retalhos: contos reunidosOnde histórias criam vida. Descubra agora