bobo baixinho que não se dava bem com altitudes altas

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     Sonhos livres em terras distantes, aqui vivo.
     Não sou um plebe ou algo que se cheire, nem sequer os reis de mais alta estatura. Diria que sou um simples servo da tal alta estatura, porém não tão plebe ou algo que se cheire. Um simples, atrapalhado pelas vozes do destino, bobo da corte.
     Vivo assim desde de que tenho minhas primeiras memórias, meu nascimento envés de algo feliz foi algo apurado, aflitivo, excruciante, atroz. Nas pressas das grandes pragas, uma simples banheira de madeira pura bem contornada com cintos de ferro e coberta os furos com piche, totalmente cheia de água, me abraçavam, senti o frio em minha pele no momento em que saí para esse mundo, porém não fui o único tomado pelo sentimento cru, também consegui perceber os últimos suspiros de uma velha senhora, aquela acima de mim, também dentro da banheira. Vi seu corpo amolecendo, um liquido extremo vermelho me cobrindo e o frio também tomando conta de seu corpo, aquela mulher já era.
     Em algum lugar pessoas gemiam, gritavam e rangiam os dentes, sorte que eu não as conhecia, senão a situação dolorosa me acertaria feito grãos de areia ao vento, não tenho o mínimo conhecimento do por que ao vento, ou por que grãos de areia? Mas assim fui instruído, assim me ensinaram, os livros de uma alta estante.
     O cargo de bobo aparecera em meus braços após uma engenhosa tarde, cujo objetivo era apenas colher altas maçãs daqueles altos pomares, mas acabou em folia, lama e cavalos. O Rei pouco sádico sofria com crises de riso me vendo daquele jeito, e não é de se esperar que A Rainha e As Princesas carcarejavam ao me ver usando uma vara de pescar com uma outra maçã mais velha e sem graça atada na ponta, para liderar o cavalo enlamaçado à roubar a maçã mais vermelha e mais alta daquela porcaria de pomar, eu juro que eu teria ateado fogo naquela peste. A árvore ganhava de mim, e cada tentativa a mais eu atraía a atenção do Senhor para mim. O velho doente que não ria a séculos decidiu me dar um grande abraço e uma grande caneca de cevada e assim me contratou.

     Os dias morando no palácio foram ótimos, ganhei um companheiro, filho de um dos abanadores. Sempre puxava minha mão em direção a cozinha, roubávamos vinhos, queijos, pães e corríamos para meu quarto discutir os maiores segredos do reino e dos civis. Eu odiava o queijo de lá e muito mais o vinho, mas sentir o calor do corpo dele valia totalmente a pena a viagem.

     Eu estava apaixonado. Ele não era mais meu amigo, e beijá-lo de forma furtiva e totalmente desprevenida foi a pior forma de manter nossa relação, ele era totalmente contra pessoas sodomitas, mas não se afastou de mim em nenhum momento.
     Anos apenas trocando olhares enquanto eu contava piadas e fazia danças sinistras em cima da minha reputação. Eu admirava como o calor em seus olhos continuava me abraçando, e mesmo de longe, sentindo um forte nojo por mim.
     Desse nojo, tudo que sobrou era a própria vergonha de ter se sentido atraído por mim, e isso em poucos segundos virou ódio, o mesmo ódio do qual tanto o assombrou, que não o fez pensar duas vezes antes de me denunciar para O Rei sentado no trono acima do altar, furtivamente, se aproximou sem eu sequer perceber. Seu alarme foi tão grande que os abanadores deixaram seus bastões caírem no chão, e os convidados da festa, paralisados em choque. Me senti um pedaço de trapo velho.
     Porém, minha cabeça confusa não compreendeu a situação de tal forma correta.
     O Garoto havia falado baixo, sussurrando. Quem fez todos se alarmarem foi o Rei. A partir dessa penumbra de sentimentos, senti raiva, senti uma fúria, mas nada disso era forte e consistente, era tudo fruto da humilhação.
     Eu estava perdido.
     Sem ninguém, totalmente insolente, querendo um curto suicídio, assim estive procurando algo pra disfarçar minha vergonha, dela o ódio, e derivado do ódio infinitas sensações, e uma delas, a vingança.
     Havia nada, perdi meu amor, minha família. O Homem cujo considerava meu pai, me traindo, pensei eu, aquele que me ensinou como lutar em guerras, afiar espadas, temperar uma boa carne e até odiar os plebes que viviam na cidade. Este homem teve a coragem de subir seu alto tom de voz e proferir as palavras com tanta certeza e injúria, que fez o queixo de todos caírem, como se eu tivesse um tipo pior e mais perigoso de lepra.
     De qualquer jeito, balbuciando de raiva minha mente se ocupou, e eu nem sequer havia parado pra pensar como caralhos O Rei saberia disso? Como ele saberia que eu sequer gostava dos homens? A única pessoa possível a saber disso era O Garoto, e obviamente eu teria descoberto isso caso minha mente funcionasse sob pressão.
     Porém ali estava eu, descalço, totalmente largado dentro de um monte de palha velha e com certeza alguns dejetos. Eu provavelmente consegui não ser preso somente pois O Rei ainda me amava, minha mente se recusava absorver tal informação, mas o meu eu mais profundo sabia que o velho não tinha um coração de gelo.
     Incrível como anos de convivência e familiaridade se vão no momento em que você atinge a crença do outro, quando elas são o seu chão.
     Ousado, tracei um plano, iria matar o rei. Fim. E assim tentei. À noite, escalei entre as raízes que brotaram e nunca foram tiradas das torres do palácio e logo logo estava lá em cima, na sacada do Rei, onde o mesmo gostava de aproveitar a vista, sentir um breve gosto de um chá, mostrar seu amor incondicional pela rainha de forma explícita, nojenta e pública.
     Quando consegui abrir as portas rangentes do quarto, senti que algo não estava certo. Na cama dupla havia somente o velho dormindo, sua esposa não estava presente. Pelas brechas da luz da lua, e estrelas, eu consegui observar que não havia nenhum lugar suspeito para que a mulher se escondesse e tentasse me pegar de surpresa. Então assim prossegui, passo por passo, inspira, expira.
     Meus pulmões estavam ansiosos, e a cada passo a mais que eu dava minha mente refletia mais ainda em outros seres, ela viajava até os momentos felizes nossos, os momentos de consolo, os momentos geniosos, os momentos em que o Rei mostrava mais afeto parental por mim do que por suas duas filhas, os momentos em que me aconselhava, tudo estava prestes a ir em vão, o homem destruiu minha reputação, minha vida e meu amor. Era cruel, impiedoso... ou será que era mesmo?
     Em cima da hora, com a faca quase pressionada em cima de seu peito, parei, e senti O Frio, aquele mesmo que senti ao sair do ventre de minha mãe, e tinha a certeza que algo definitivamente estava errado. A luz da Lua, refletida do Sol, mostrava uma clara fivela de cinto, cintilante, atrás de uma das cortinas do quarto, esse calafrio febril me tomou tão rapidamente e tão inesperadamente que parecia que eu estava prestes a enfrentar um demônio, uma besta com 600 corações, e nenhum deles era usado para sentir.
     Assim, me destraí, e mesmo sem tirar meus olhos por um minuto da fivela brilhando atrás dos tecidos, senti o frio gélido, muito mais impiedoso e sagaz, agora atravessando meu peito.
     Me senti como minha mãe se sentiu. Ainda lembro. Meu corpo pesou, me senti frio, e a sensação piorou, assim quando olhei para baixo, uma lâmina extremamente bem cuidada, lixada, polida, atravessava meu peito. O Rei Impiedoso fazia mais uma vítima, dessa vez, seu filho, que o olhou desesperado. O brilho em seus olhos esvaindo, uma tempestade horrível de inverno tomando conta das plantações, a neve fazendo vitimas, famintos, mortos, em peste. Assim, minha visão apagou, e os últimos sussurros que escutei, eram o destino jogando na minha cara, que eu era um bobo, baixinho, que não se dava bem com altitudes altas.

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