Prólogo.

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E se alguém te dissesse que entre nós há demônios vagando em busca de sangue, almas vendidas e prazer, assim como também anjos instigados à consumar as premissas de nossas mortes, você acreditaria?

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A fumaça impertinente dos cigarros acesos atrapalhavam minha visão ao mesmo tempo em que impregnavam em minhas roupas. Céus, como eu odiava esse cheiro.

A fumaça parecia sugar parte da minha existência, resumindo ela à impaciência e estorvo.

Ainda era madrugada, não importava quantas vezes eu conferisse o relógio. As ruas mantinham um movimento bem reduzio por conta do horário tardio, mas, mesmo assim, não faltava o amontoado de bêbados e drogados.

Numa respiração baixa, fechei um dos olhos mantendo o outro entreaberto encostado na lente do binóculos noturno, ampliando ainda mais o meu campo de visão.

— Merda. — resmunguei, jogando os cabelos para trás. Eu estava tentando pegar foco, o que se mostrou impossível. — Malditos fumantes.

Respirar fundo ali era pedir para ter o pulmão retorcido, então apenas abaixei a cabeça e suspirei. Me dei por vencida e apoiei as mãos no chão gelado, fazendo um pequeno impulso para levantar. Bati as palmas das mãos uma na outra para livrar-me da poeira e caminhei em direção da escada de emergência do prédio.

— É melhor aquele imbecil me pagar bem. — murmurei enquanto descia as escadas cautelosamente para manter o máximo de silêncio que conseguisse.

Era a primeira vez que concordava em fazer algo para alguém que não fosse eu mesma, e cheguei a conclusão de que seria a última. Ser independente era realmente mais fácil e prazeroso.

Mas, como era para Killian, eu poderia fazer esse esforço. Ele era a única pessoa cara de pau o suficiente para me pedir um favor.

— Aquele cretino. — continuei presenteando Killian com um xingamento diferente a cada passo dado.

Fazia exatamente cinco dias que eu vigiava o local como uma coruja esperando uma possível presa fazer qualquer barulho, porém sem sinal do homem aparecer ao menos em alguma fresta de janela, o que era frustrante. Como eu poderia matar alguém que sequer cheguei a ver e ainda com um prazo?

— E aí, gostosa! Vem aqui com o papai, delícia! — um homem com a barba grisalha e desgrenhada e um odor de álcool considerável para parecer putrido como se ele estivesse se decompondo ainda vivo, se insinuou para mim com risadas asquerosas dentro de um beco qualquer enquanto eu seguia devagar com as mãos nos bolsos da calça jeans.

— Vai se foder. — as palavras saíram no automático da minha boca, como se estivesse programado para isso. E, de certa forma, estava.

Eu odiava quando isso acontecia. É nojento e repulsivo, no entanto, infelizmente, não é algo que seja possível evitar e até arrisco dizer que nunca será.

Confesso, já matei vários por este motivo. Talvez, se ficassem apenas quietos em seus cantos imundos e com as bocas nojentas fechadas, pudessem sair ilesos.

Ela é repugnante.”

Que desperdício de vida.”

“Acho que é prostituta.”

“Ela não tem vergonha?”

“Que Deus a perdoe.”

Balbucios surgiram ao fundo.

Encarei as duas senhoras do outro lado da rua que, entre olhares de desaprovação, cochichavam sobre mim enquanto caminhavam. Isso se repetia constantemente quando eu andava pelas ruas de Silverport - e em qualquer outra.

Elas me encararam outra vez ao longe e não demorou muito para que nossos olhares se cruzassem e as mesmas acelerassem os passos, o que me fez rir soprado.

Elas tinham as almas podres, eu podia sentir isso, podia ver. Não que fosse incomum.

Ter clarividência é descrito como ter um dom incrível para a maioria das pessoas, mas, no meu caso, era apenas desnecessário e – muito – inútil também. Até que me ajudava, vez ou outra. No entanto, sentir o medo que emanava das outras pessoas como uma aura, sentir o peso de suas almas e ver o que quase ninguém pode ver não é nada mais que cansativo e inconveniente.

Apesar disso, quando preciso, consigo reter momentos e visões do presente para, mais tarde, poder revê-los e analisar cuidadosamente como um replay holográfico. Além disso, por ser uma clarividência do tipo Intencional, consigo ter uma visão de outro determinado espaço ou plano sem ao menos precisar me mexer. Incrível, não? Seria, se isso tudo não se tornasse frívolo já que não posso usar quando eu quero.

É uma coisa de momento, sabe? Involuntário. Simplesmente acontece quando se acha "necessário”, por vontade própria. Chega a ser cômico poder ampliar a imagem ao meu redor ao ponto de ver os milhares de átomos e não poder usar isso para nada. Eu não sabia decidir se isso era peculiar ou apenas patético.

Sempre fui repudiada por isso, até começar a viver às escondidas. Isso pelo menos colaborou com a minha lúgubre e apática vida. De qualquer maneira, não é importante e nem faço questão.

Enquanto andava, observei minuciosamente as ruas, vasculhando com os olhos até os bueiros que existiam ali. Todo detalhe era relevante, mesmo que parecessem inúteis poderiam ser essenciais para uma fuga e afins.

Depois de passar dois becos, tudo ficou calmo. Calmo até demais. Coloquei o capuz do meu casaco sobre a cabeça e segui cabisbaixa, retendo meus pensamentos bagunçados. Eu tinha que entrar na casa daquele homem de uma vez por todas, não tinha mais como adiar ou ficar de tocaia por muito tempo.

Eu tinha que me virar de algum jeito. O prazo dado era de apenas uma semana até que ele fosse encontrado morto em sua casa, seja por suicídio ou acidente, e já tinham se passado cinco dias. Cinco fucking dias do meu tempo.

Se ao menos a clarividência pudesse funcionar nesse momento, eu poderia repensar sua desnecessidade.

Bom, ao menos o pagamento deve valer a pena. De qualquer forma, pretendo continuar fazendo as minhas coisas, do meu jeito, no meu tempo e sumir de vez da vista das pessoas.

Ou seja, isso acabará amanhã

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