Capítulo Único

13 1 0
                                    


Completamente cinzento, o céu daquele dia de Outono anunciava a chuva que estava por vir. O vento sopra com força, chacoalhando árvores e levantando folhas na estrada de pedra pouco utilizada. Duas figuras caminham rapidamente, seus olhares intercalando-se entre a estrada à frente e o manto fechado de nuvens acima.

-Você acha que eles estão bem? – Pergunta a anã. Traja roupas leves e de um tecido simples, mas de boa qualidade. Apesar das nuvens de poeira levantados pelo vento, as vestes continuam alvas como neve, e os cabelos dourados, presos em uma trança, permanecem intocados. Carrega consigo somente uma espada curta à cintura e um escudo amarrado às costas, por precaução – Faz um bom tempo desde a última carta, talvez tenha acontecido alguma coisa...

-Só saberemos quando chegarmos lá, então não tem porque se preocupar com coisas sem sentido como essas. – Respondeu sua inusitada acompanhante, após um segundo reflexivo. Diferente do brilho e elegância da paladina, a clériga de si mesma vestia uma armadura de couro gasta e já bastante remendada. Carregando um embrulho apoiado sobre o ombro, a um-oitavo-orc franze o cenho por um instante, pensativa, depois faz um aceno com a cabeça e continua – Você sabe que nenhum deles voltou da forma que era antes da Tempestade, e o confronto com a Mãe não saiu bem pra ninguém. Veja, estamos perto.

Um raio pisca no horizonte, e um trovão ruge alguns segundos depois. Em entendimento mútuo, ambas apressam o passo em direção à cabana cujas janelas iluminadas indicam a presença do calor de uma lareira. As duas chegam à porta assim que as primeiras gotas de água começam a cair. Abrindo a porta de madeira destrancada, elas conseguem entrar segundos antes da tempestade começar a desabar.

***

O barulho da faca na tábua de madeira preenche o salão principal, acompanhado pelo crepitar da lareira e pelos assobios do cozinheiro. Com movimentos leves, ele recolhe os vegetais recém-cortados e os adiciona ao caldeirão. Escutando a porta de madeira ranger conforme é aberta, ele rapidamente se vira, uma mão pousando instintivamente na cintura, onde uma adaga de metal negro está embainhada. Ao ver quem entrou na casa, repara que prendeu a respiração e solta um suspiro discreto.

-Ah, são vocês. – Diz ele, limpando as mãos no avental e voltando a remexer o cozido. Olhando para Geburath, franze o cenho – Que raios é isso aí?

-Carne de dinossauro da minha última caçada. – Responde ela, andando até a lareira e abrindo o pacote. Depois, prendendo o naco de carne num espeto e deixando-o próximo ao caldeirão, ela olha ao redor – Onde estão os outros dois?

-Salaz deve estar no quarto... Acho? – Responde o meio-elfo, pensativo. Voltando ao trabalho de cortar vegetais, ele continua – Foi descansar um pouco as costas depois de trabalhar na horta. Vic deve estar com ele, imagino. – Ele para um segundo, seus olhos voltados para o teto – Eu não ouço nada, então acho que vocês podem subir lá e dar um oi.

-Nem vai precisar. – Respondeu Salaz, terminando de descer as escadas e indo em direção às duas e envolvendo ambas em um abraço de quebrar costelas – Shura, Geburath, quanto tempo! – Após algumas batidinhas de Shura no ombro de Salaz, ele finalmente as coloca de volta no chão – Eu vi vocês chegando, que bom que conseguiram vir! Como estão as coisas lá fora?

-Estão até que bem. – Respondeu Shura, sorrindo – O Enzo pediu pra te pedir desculpas por não conseguir aparecer dessa vez. A Outra Outra Taverna tá bombando e ele não conseguiu sair dessa vez, alguma coisa sobre uns novatos que precisam de treinamento. E você, como tá?

-Ah, ando bem. Ainda tentando voltar à forma depois de ter sido desmaterializado, mas nada que o tempo não resolva. Pelo menos já estou conseguindo... – Enquanto fala, o olhar do druida passeia pela sala, até parar em uma das janelas – O que o Vic tá fazendo lá fora na chuva? – Andando até a porta dos fundos, Salaz a abre e grita – Querido, sai da chuva, a Geburath e a Shura chegaram! – Quando não obteve resposta, ele suspirou e saiu, fechando a porta atrás de si.

De pé, Vic estava parado de braços abertos no meio da tempestade. Salaz andou até ele depressa, chamando-o diversas vezes, mas sem conseguir reação alguma.

-Vic, vamos entrar, vem. – Continua ele, assim que alcança o bardo, que continua parado, completamente enxarcado enquanto olha para o céu. A água desce por seu rosto e passa rapidamente pelo pescoço cheio de cicatrizes na região da garganta. O bardo chacoalha um pouco, mas Salaz sabe que não é de frio. Com cuidado, pega o rosto de Vic entre suas mãos e abaixa sua cabeça até que os olhos castanhos encarem os brancos. Finalmente obtendo a atenção desejada, ele encosta a testa na do companheiro – Não foi só sua culpa. – Diz Salaz – Todos erram, e você fez tudo que podia pra tentar consertar tudo. Não foi só sua culpa. Nós estamos aqui por você.

Os olhos castanhos pareceram recobrar um pouco de lucidez, e Salaz aproveitou para fechar Vic em um abraço apertado. A magia de Salaz começou a aflorar, e vinhas rapidamente crescem do chão, circulando-os e criando uma proteção contra a tempestade. Os braços de Vic envolvem Salaz e o puxam para si.

-Parece que alguém voltou ao normal. – Diz o druida, com um sorriso aliviado. Vic faz que sim e planta um beijo no pescoço de Salaz. Quando as mãos de Vic começam a descer de suas costas, ele interrompe – Aqui fora? Tem certeza? – Quando Vic faz que sim, Salaz sorri, e mais vinhas crescem e terminam de escondê-los.

***

-... e parece que a Shi e o Touro não apareceram porque foram fazer uma viagem com a Joana. – Dizia Geburath quando a porta para o quintal se abriu de novo, e por ela entraram Salaz e Vic – Vocês ficaram um bom tempo lá fora. Tá tudo bem?

-Sim sim. – Respondeu Salaz, com um sorrisinho envergonhado – Desculpem a demora. Eu vou... Levar o Vic pra tomar um banho depois dessa chuva gelada. Já voltamos. – E subiu a escada rapidamente acompanhado de Vic.

-Parece que a plantação está mesmo boa por aqui, hein, Fliq. – Disse Shura sorrindo, ao que o meio-elfo corou até a ponta das orelhas.

-Eu... Eu acho que eu vou ver se eles precisam de alguma coisa. – Disse ele, pousando a faca no balcão e também andando em direção às escadas.

-Não tenham pressa, nós precisamos descansar um pouco ao redor da lareira, mesmo. – Respondeu Shura, o sorriso se alargando numa risada.

-Fico feliz que eles estejam bem, na medida do possível. – Diz Geburath, dando de ombros e sentando-se numa das poltronas próximas ao fogo.

Do lado de fora, a tempestade termina e dá lugar ao céu alaranjado do crepúsculo.

TempestadeWhere stories live. Discover now