Essência Roubada

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Era uma vez um pequeno anjo. Filho da natureza, fora posto aos cuidados de criaturas semelhantes em seu físico, porém muito diferentes em seu interior. A ele foi dado amor e cuidado. O anjo, que apareceu de forma inesperada naquele ambiente, foi acolhido como uma esperança, puro sentimento.


O anjo não teve chance de nem mesmo entender quem era. Uma criatura amiga de sua família viu nele uma chance. Pouco a pouco se aproximou, observou suas asas, o atraiu com uma máscara. A impureza daquele mundo era diferente do que o anjo carregava de sua origem. Uma a uma, as penas de suas asas foram roubadas sem que percebesse. O ladrão, aos poucos, foi perdendo interesse, o anjo já não era o mesmo, suas penas já não eram mais robustas como antes, suas asas estavam cada vez mais escondidas até que não mais apareceram. Ainda por perto, o ladrão via de longe o anjo crescer sem mais mostrar suas asas.


Era tudo um pesadelo, imaginou o anjo anos depois. Ele não sabia mais que tinha asas. A verdade pode ser fluida, ela nasce, percorre caminhos e reaparece em seu leito de nascimento, com um pequeno detalhe: transformada. O anjo reencontrou parte de sua verdade, ele realmente havia sido roubado. O que significava ter asas? Ele era que tipo de criatura? Um ser humano de asas parece algo muito fora da realidade. O anjo cresceu em silêncio, com medo. Obediente, sempre com olhares para ele e dezenas de futuros possíveis rezados pela família. O anjo, então, percebeu que suas asas não eram vistas por todos, por isso ninguém percebeu o roubo.


Foi nesse momento que o anjo se dividiu. Parte acreditava em suas memórias, parte acreditava na realidade dos últimos anos. Ele perdera sua essência, mas agora sabia que tinha uma. A dualidade de não saber quem ou o que realmente era fez o anjo crescer com um luto dentro de seu coração, sentia que parte de si havia morrido. Ao mesmo tempo, ele sentia essa essência e chamava por ela. Essa essência o guiou como uma voz fraca que vinha de longe desde então. Sua família deixou de ver brilho no menino, mantiveram a esperança nele até certo ponto, mas agora sem entender o que estava acontecendo, e sem forças, interesse e sem o entendimento de mundo necessário para buscar um entendimento. Eles só observavam o anjo crescer.


Seu corpo já era o de um homem, o anjo já havia sido consumido pela dúvida de quem ou o que ele era. Em certos momentos sua essência falava alto e ele brilhava, seguia sua vontade, juntava suas forças e desbravava o mundo, mas na maioria do tempo, principalmente perto de sua família, o anjo era só um corpo que sobrevivia para completar mais um dia. Dois em um, o anjo estava partido, ele precisava contar sua história.


O anjo procurou quem o ouvisse, achou, e as dúvidas se tornavam profundas. Entre a escuridão de quem o mundo o fez e a luz divina e resplandecente de sua essência. Ele se tornou trevas, mesmo sendo luz. Se tornou penumbra ao se questionar, uma luz piscante que alternava seu eu interior. Quando a luz aparecia, todo o mundo se abria, essa mesma luz poderia sumir em um piscar de olhos, ou diminuir sua intensidade. O anjo sentia falta de suas asas, vez ou outra sentia que já houve algo ali. Fora roubado! Não tem mais como voar, agora era o momento de mostrar o mundo sua luz e tirar, apontar e curar o que poderia de um mundo doente. Essa missão ainda era possível, fazia quando tinha forças, mas estava envenenado, a doença do mundo estava nele e, muitas vezes, se perguntou se ele mesmo era uma doença no mundo.


Não faz sentido um anjo viver sem asas, sem sua luz. Quantas vezes ele sonhou em sair daquele mundo para tomar de volta a si sua verdadeira e pura essência...


A família do anjo precisou ir para onde ele jamais deveria ir, seria o contrário de tudo o que se preparou. Um anjo tem uma missão com o mundo, não deveria se esconder dele ou ficar isolado. Permaneceu onde estava, sozinho. Continuou sua caminhada do mundo e sua guerra dentro de si. Aquele lugar já não era para si. A natureza, sua verdadeira mãe, o tirou daquele lugar. Ela pode ser cruel, mas sabe o que faz.


Que lugar é o lugar ideal para um corpo com duas essências? Uma real, de berço, e outra criada? Sem falar de todo o meio termo entre a luz e a escuridão. Ele se perdia, se achava. A escuridão dentro de si o fazia trair o que sua essência dizia que era certo, o que sua essência dizia que era ele.


No momento certo, ele escolheu seguir o caminho da sua real essência, aceitando o fato de existir trevas dentro de si, um outro eu. Ali, não importava mais o que era essa essência, de onde tinha vindo, qual era sua missão ou como cumprir seu propósito. Ele percebeu que precisava assumir que o mundo roubou muito do que ele era, ao mesmo tempo criou a missão de criar, do pouco que restou, a luz dentro de si. Não era tarde.


Ele tentou e foi visto por poucos, a luta dentro de si ficava cada vez mais intensa. Vergonha, medo, aceitação. Mundo e submundo. Um só entrando em lugares completamente diferentes, o submundo não poderia ganhar, porém, uma vez que você conhece uma verdade, se torna impossível de não vê-la e ser seduzido a escolher estar ou não desempenhando um papel naquele lugar, naquele momento. Uma guerra possui várias pequenas lutas. O anjo, agora, era um soldado sem lado. As trevas o capturavam em algumas lutas, quando conseguia estar consciente, sua essência o permitia seguir o caminho da sua própria escolha.


O anjo entrava em muitas lutas e, por isso, estava sempre fraco. O tempo o espremia, havia cobrança da família que o julgava de longe, mas que ele ainda dependia deles. Ele entendeu que deveria escolher suas lutas ao invés de ser colocado nas situações, bem, a vida toda ele foi jogado nas lutas, a escolha era uma novidade. O anjo escolheu uma luta grande, que poderia virar o jogo do qual perdia das trevas. Assim foi feito, e por essa escolha ganhou um aliado. Ele viu em outra pessoa as asas que nele foram roubadas. Impressionante como ninguém ao redor via aquelas asas que estavam quase prontas para enfrentar o mundo.


Dois anjos começaram a lutar lado a lado e, em pouco tempo, o mundo caiu em trevas. A solidão foi forçada, o afastamento de forças que se uniam foi algo comum nesse novo mundo. A natureza mandava recados, parecia necessitar mais que nunca dos seus filhos nessa terra.


As trevas que aos poucos sumia da vida do anjo tomou lugar da esperança. Mais atento e sábio, o anjo via os movimentos das trevas, mas sabia que parte dele conhecia aquele caminho. As trevas o atacavam, o anjo resistiu bravamente em uma luta interna e externa. O mundo não entendia o que acontecia, afinal, não podiam ver o que acontecia ali. Um anjo deveria brilhar e chamar atenção, ele estava cada vez mais invisível aos olhos dos humanos.


O anjo agora estava cada vez mais nos extremos, luz e escuridão. Sua essência gritava dentro dele para que pudesse sobreviver. A luz tem um segredo. Quando não havia mais forças, ela precisava colocar o anjo na escuridão. Não se engane, escuridão e trevas são coisas diferentes. A escuridão é silenciosa e permite que a luz se acalme e sobreviva. As trevas se aproveitam da escuridão.


A luz se enfraqueceu dentro do anjo e fora jogado na escuridão. O anjo não resistiu as trevas, traindo, assim, o pacto que fez consigo mesmo e a confiança do anjo que lutava ao seu lado. Quando a escuridão toma conta, o anjo fica perdido dentro de si, sem controle, sem vida. Um anjo nas trevas é melhor que um anjo morto, assim ele entendeu o recado da natureza. Um erro não tiraria sua essência, o daria força para sobreviver e ter uma nova chance, dessa vez mais forte para ver nascer novamente as penas das asas cruas que ainda estavam lá.

Essência RoubadaWhere stories live. Discover now