A Alomorfia de Políxena

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Pingava.

Na verdade, escorria.

Pelo chão escorria o rubro riacho que desaguava de seu peito. Peito branco, aberto, exposto, corajoso, ainda com algum resquício de pudor. Nem uma só vez hesitou antes da espada impiedosa lhe penetrar o corpo. Fora tão rápido, tão abrupto, que mal pôde registrar qualquer sensação ou dor. De fato, não houve dor ― não física, pelo menos. Não conseguiu sentir o roçar atro formigando contra sua pele, antecedendo a vulgar cravadura da lâmina em seu âmago que, tão logo, tirou-lhe a vida.

Eu falo de Ájax ou de Políxena?

Ele, de guerras e vitórias, buscou pela morte afligido pelo ódio. Ódio pela derrota pouco conhecida por ele. Ódio por Ulisses e suas sábias palavras danosas, ódio por Heitor, o único que fora capaz de o deter em duelo, ódio por Aquiles e suas armas. Ela, minha filha, jovem e virgem, encontrou a morte tomada pela conformidade. Não havia para onde fugir. Não havia destino diferente dos que acometeram seus irmãos e pai, mortos a maioria; quanto sangue dera a minha própria casa. Era preferível sangrar em nome da imolação a Aquiles do que perecer, dia após dia, como escrava.

No fim, a minha doce princesa, filha de Príamo, foi mais corajosa do que o filho de Télamon ― Ájax, que, contrariado, atentou contra si mesmo. Em um ato de busca por dignidade, Políxena demonstrou mais bravura do que o forte guerreiro jamais mostrou em vida. Ele, que violou minha filha Cassandra, jamais teria a firmeza exibida por Políxena.

De Ájax nasceu a flor de cor púrpura, tão distante do branco imaculado do busto de Políxena. O sangue amargo dele gerou uma flor enquanto Políxena permaneceu, morta, nos meus braços, amaldiçoada por um semideus, um meio-homem; o mesmo homem cujas armas levaram Ájax à loucura de findar a própria vida com aquela espada ― a mesma espada que uma vez pertencera ao meu filho, Heitor. E tudo começou, mesmo que morto, pelo filho de Tétis e Peleu.

Tudo voltava a Aquiles.

Maldito Aquiles! Aclamado por tantos, mesmo trazendo tantas desgraças. Pobre de mim! Eu, a rainha que assistiu à família ruir tal qual à Troia, que ardeu em chamas. A mim só restou ladrar por aí, sem rumo.

Que Ulisses faça bom proveito das armas do semideus. Ájax envergonhou-se por uma ira estúpida, como uma criança frustrada. Logo ele, o poderoso guerreiro. Estúpido! Políxena, por sua vez, foi arrancada do meu colo, arrastada para a morte e assassinada pelas mãos do filho de Aquiles.

Ájax deu luz a uma flor. Que doce ironia. O bravo lutador, colérico, se tornou flor.

E quanto a Políxena?

Ela transformou-se em mártir. Sua metamorfose foi se tornar uma vítima, mais vezes do que deveria ser permitido a uma jovem mulher. Ainda assim, ela, a minha doce menina, nenhuma só vez derramou uma lágrima sequer.

→ Esse conto foi produzido por mim para um seminário da disciplina de Narrativa Latina da Faculdade de Letras da UFRJ

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Esse conto foi produzido por mim para um seminário da disciplina de Narrativa Latina da Faculdade de Letras da UFRJ.

→ Conto inspirado nos episódios "As armas de Aquiles" e "Hécuba, Políxena e Polidoro" do Livro XIII da obra Metamorfoses (8 d.C.), de Ovídio.

→ Imagem anexada: BLONDEL, Merry-Joseph. Hecuba and Polyxena. Após 1814. Óleo sobre tela. 204,63 x 146,21 cm.

A Alomorfia de PolíxenaWhere stories live. Discover now