Vida Real

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"Imagine controlar toda a sua vida em cada detalhe. Decidir quem você será, o que terá, como será. E poder sentir pleno prazer e satisfação a cada segundo", foi o que ele disse. "Não", respondi. Acordei de repente no meio da noite, como nas outras vezes.

Há muito tempo que este sonho me perturba. Não o compreendo. É sempre o mesmo quarto obscurecido com aquele homem apontando para a máquina. Por que eu a rejeito?

Levanto de manhã e vou para o trabalho. Sou repositor de estoque num supermercado. É a consequência de nunca ter feito faculdade. Me pego pensando: Se eu pudesse escolher, teria nascido rico. Assim, não precisaria estudar ou trabalhar. Ao menos, não por necessidade. Estudaria apenas o que desejo, por puro prazer. No fim do expediente, quando o dia está acabando,  retorno para casa. 18h de trabalho. Não há ninguém me esperando. Uma pequena sala de estar solitária e um sofá rasgado me dão as boas-vindas. Ninguém mais.

"A vida nunca será um tédio porque você poderá escolher o nível de desafio que quiser, quando quiser, e ainda poderá dar um fim, caso ache que exagerou. Uma realidade perfeita, totalmente programada a seu gosto."

"Não!", Respondi mais uma vez. Por quê? Você é idiota? Sim! Eu diria! Mil vezes sim! É tudo o que quero. Sair desse absurdo repetitivo onde nada acontece! Acordo de madrugada.

Outro dia se repete. Do mesmo jeito. Uma eternidade de mediocridades. Quando isso vai acabar? As pessoas me olham como se eu não tivesse valor. Se fosse elas em meu lugar, não suportariam. E se fosse eu no lugar delas, faria tudo diferente. Eu seria alguém! Mas isso me foi negado pelo acaso. Condenado ao simples fato de ter nascido sob circunstâncias ruins. A culpa não é minha. Todo o meu potencial foi tragado por minha falta de sorte. É tão injusto!

"Me diga, por que você rejeita? A máquina oferece a felicidade eterna. Prazer constante. Não é isso que todos buscam?". "Não seria a verdadeira realidade", respondi, e continuei: "Mesmo que dentro eu sentisse que fosse real, a verdade mesmo é que eu seria só um corpo definhando". Eu não aguento esse cara! Acordei possuído pela raiva. Vou acabar com isso de uma vez!

Já tem um tempo que venho pensando nisso. Pego os remédios que separei especialmente pro dia em que tomasse coragem. Misturei-os no liquidificador com água e liguei!

Quando prestes a virar o copo na boca, para minha surpresa, um portal se materializou na minha sala.

— O que é isso? — perguntei num pulo. O copo se espatifou no chão.

Um menino negro vestindo um terno e óculos escuros atravessou o portal. Seu cabelo tinha linhas estilosas desenhadas na lateral da cabeça.

— Você tomou uma atitude proibida pelos protocolos de segurança — ele disse. Sua voz me soava como algo pausado e artificial. — Volte a dormir.

— Quem é você? O que tá acontecendo?

— Volte a dormir. Iremos restaurar o dano apagando a memória durante o sono.

— Minha memória? Não quero que apague minha memória! O que tá acontecendo?

— Você burlou as diretrizes da Utópica Beta Version. Deve retornar a sua cama para reiniciarmos a programação.

— Eu não quero reiniciar nenhuma programação! — Olhei para meu quarto. E pensei por um instante nos sonhos. É claro! — Eu estou na máquina, não estou? Essa não é a vida real!

— Essa conclusão não devia ser possível.

— Sim! Eu estou na máquina! — Sorri batendo as mãos — Quero sair! Me leve para o mundo real!

— Senhor, desejar desconectar-se da Utópica Beta Version é uma alternativa que não poderá se repetir. Uma vez fora, não poderá voltar. O senhor está certo disso?

É tudo o que quero! É por isso que em meu sonho rejeitava a máquina. É uma versão beta! Claro que haveria imperfeições na fase de testes. A minha vida lá fora deve ser melhor do que essa!

— Sim! Eu quero sair da Utópica Beta Version! 

As luzes se apagaram subitamente. Havia só eu numa imensidão de trevas. De repente, uma luz brilhou. Caminhei na direção. O piso era macio, como terra molhada, e quanto mais perto da luz, mais úmido ficava até meus pés afundarem num líquido estranho. A luz parecia uma janela para fora. Haviam pessoas ao redor usando equipamento laboratorial. Quando finalmente atravessei a janela, ouvi vozes me tirando de um tipo de tanque de água:

— Ele voltou! Ele voltou!

— Chequem os batimentos!

Meus olhos pesavam. Senti minha consciência fugir.

— Oh, não!  Estamos perdendo ele!

Acordei numa cama estranha, debaixo de um teto cinza.

— Finalmente, amigo.

— Você — Era o homem dos meus sonhos. Estava sentado numa cadeira ao meu lado. 

Tentei levantar mas, para meu desespero, meus braços desapareceram. Gritei como nunca! Rolei no susto até cair ao chão.

— Acalme-se! Acalme-se! Você estava ciente dos efeitos colaterais quando quis entrar na máquina!

— O que fez comigo?

— A descarga elétrica procura pelas extremidades do usuário. Poderia ter sido suas pernas, ou sua cabeça. Você sabe disso. Foi você quem projetou o equipamento pra proteger a cabeça.

— Eu?

— Sua memória está confusa devido a vida falsa — Suspirou. — Trabalhamos juntos para criar a Utópica. E você foi o primeiro humano a entrar. Você sabia dos riscos.

— Mas, em meus sonhos, nunca aceitei entrar.

— Você quis entrar quando foi condenado a prisão perpétua.

— Prisão? O que eu fiz?

Ele me olhou de forma estranha. Era pena? Não, acho que não. Abria a boca devagar, e logo fechava. Como se não quisesse falar.

— Diga de uma vez, o que eu fiz?

— Você descobriu que sua esposa havia te traído. Pegou o revólver e a matou na sala. Quando sua filha chegou da escola, viu a mãe no chão, e você no sofá. Ela chamou os seguranças do condomínio. Depois da sua prisão, descobriram que você também havia matado o amante — ele engoliu seco —, com requintes de crueldade.

Fiquei em silêncio por um tempo. Essa vida parece tão diferente. As lembranças são confusas. Lembro da minha filha. Lembro da minha esposa. Mas tudo é tão vago. Tão distante.

— Não. Esse não sou eu. Essa não é a minha vida. Quero voltar para a máquina.

— Isso não será possível, Martin. O juiz só permitiu que você entrasse mediante condições. E você quebrou uma delas ao tentar se matar. Suas chances acabaram, meu amigo.

— Não, por favor. Eu quero voltar para a máquina!

— Já disse: é impossível. 

Ele se levantou e saiu. Foi quando percebi que estava numa prisão. As grades foram fechadas, e eu estava no chão, sem braços, e sem saber como levantar.

— Bem-vindo a vida real, Martin.

Vida RealWhere stories live. Discover now