Capítulo 1 sem título

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Sérgio lutava para acomodar as pernas compridas demais na cadeira designada para o réu. O peso da vergonha e da culpa o faziam parecer um saco semi-vazio, largado de qualquer jeito naquele assento. Ele era um homem imenso, alto e com mais de cem quilos e partes do quadril e dos flancos escapavam pelos lados da cadeira de design clássico. Os joelhos insistiam em bater numa espécie de bancada, que só servia para dar a impressão de que havia uma barreira física entre ele e os que não estavam ali acusados de nada. A juíza e a promotora sentavam-se atrás de uma bancada levemente elevada e o olhavam de cima, tal qual os pais fazem com os filhos pequenos quando precisam discipliná-los. Dedo em riste, fala firme. Tapas e palmadas jamais. Isso ficara na sua própria infância, junto com o chinelo e a cinta do pai, que só pararam de lhe castigar a carne quando os primeiros pêlos lhe surgirem sobre a boca.

Sérgio se curvou para a frente para aliviar as costas. As muitas horas na cadeira pequena demais lhe torturavam a lombar. Sua advogada lhe dera uma caixa de lenços de papel. Desnecessário. Seus olhos eram um leito de rio sem nascente. Ao lado da caixa, uma jarra e um copo de água já meio vazio. Ele sentiu frio. Apesar de ser verão, o ar condicionado estava gelado demais, provavelmente para deixar juízes, promotores e advogados confortáveis sob ternos e togas. O chão de parquet era impecavelmente limpo. Cortinas de veludo vermelhas emolduravam solenes as grandes janelas verticais. A sala cheirava a armário fechado e café. Sérgio olhou para a senhora de óculos que julgou ser a escrivã e por uma fração de segundo pensou em como seria trabalhar naquela sala. Como seria ver o destino de pessoas sendo decidido por um grupo de gente que só ouvia falar dos fatos.

No primeiro banco destinado à plateia, estava sua esposa. Era a primeira vez que ele a via em meses. Ela parecia abatida, e, com a mão direita, girava a aliança de casamento que ainda insistia em usar. Estava de braços dados com a irmã mais nova e segurava a bolsa marrom surrada sobre o colo. Nas mãos, a ovelhinha de pelúcia com que o filho gostava de dormir. Na sala, um silêncio fúnebre empestava o ar. Apenas uma tosse ocasional ou uma caneta sendo deixada sobre a mesa revelavam que ali havia gente viva.

As testemunhas falaram baixo de eventos tão dolorosos que muitas não conseguiram manter a compostura. A enfermeira do pronto-socorro não conteve as lágrimas: "Ele estava catatônico. Olhos bem fechados, balançando para frente e para trás". Ela continuou a falar. Disse que ele parecia preso naquele tormento só dele, que ficou calado por várias horas. "Eu então me sentei ao lado dele, segurei a sua mão e perguntei se ele queria algum calmante." Sérgio se lembrou dessa mulher. Ele lhe respondera que não queria nada. Que não merecia nada para diminuir sua dor. A única coisa que ele queria era sentir tudo e depois morrer.

Sérgio enfrentava uma acusação de homicídio doloso. Nenhum fato sobre seu caráter ou sua boa fé estavam em disputa. Ele era apenas um homem de quarenta e nove anos, um comerciante correto, uma pessoa amável. Tinha sido um pai amoroso, consciencioso e diligente até o verão de três anos antes, quando, atormentado pela sobrecarga de trabalho e pelo trânsito pesado, ligação atrás de ligação, ele esqueceu de deixar seu filho Luís Gustavo na creche. O menininho ficou preso a uma cadeirinha no banco traseiro do carro por quase nove horas, no calor escaldante de janeiro, em um estacionamento de um prédio em que Sérgio alugava um escritório.

A certa altura, a juíza declarou que o tribunal entraria em recesso para o almoço. Sérgio se levantou cambaleante, virou-se para a porta da sala, localizada atrás da última fila da audiência e viu, como se fosse a primeira vez, que havia dezenas de pessoas testemunhando a sua desgraça. Seus dois irmãos estavam lá, assim como a psicóloga que via semanalmente e o pastor da igreja luterana que a família frequentava. Seus olhos altos agora fitavam os próprios pés, espremidos no melhor sapato que tinha. Ele balançou sem equilíbrio até que uma mão o firmou. A voz então engasgou em um falsete agudo: "Tadinho do meu bebê!"

A tarde foi preenchida por depoimentos do médico legista e fotos do corpo: "A parte inferior do corpo tinha uma coloração vermelho-púrpura...os órgãos abdominais entrando em autólise...deslizamento da pele...temperatura corporal central acima de 50 graus...morte por hipertermia ". Sérgio lembrou de quando saiu do prédio de escritórios às pressas, avisado pela portaria. Alguém havia quebrado o vidro do seu carro com um tijolo e havia uma ambulância e um carro da polícia. Um policial lhe disse que havia um óbito e lhe entregou os documentos de encaminhamento para o IML. Como assim, um óbito? Ele tinha que ir, estava quase na hora de buscar o filho na creche. Por um segundo, Sérgio ainda pensou que tudo aquilo pudesse ser mentira. Só quando entendeu que aqueles eram os documentos de Guto, percebeu que havia perdido seu menino.

No dia seguinte, o tribunal ouviu de uma vizinha que Sérgio e a esposa eram um casal de quase quarenta anos sem filhos e que queriam desesperadamente serem pais. Fátima contou das idas do casal a abrigos e a advogados, das visitas das assistentes sociais e das três longas viagens que fizeram ao interior do estado, até encontrarem e adotarem o menininho de um ano e meio. A vizinha estava em casa no dia em que a longa espera de Sérgio por ser pai terminou. Fátima o viu brincar incansavelmente com Guto no gramado, estava no dia em que ele instalou um balanço na única árvore do quintal e quando comprou o uniforme completo do seu time de futebol para o menininho. Ela foi convidada para o seu aniversário de dois anos, onde o gurizinho corria vestindo uma pequena fantasia de Homem Aranha. Sérgio contratou um mágico para fazer uma pequena apresentação para as crianças e sobrou tanta comida, que a família lhe deu duas dezenas de salgadinhos acomodados numa caixa de papelão. A esposa de um dos irmãos de Sérgio contou como ajudou o casal a encontrar a escolinha ideal para o menininho, traumatizado por um início de vida cheio de privações materiais e afetivas. A creche era cara e longe da residência do casal, mas o desenvolvimento de Guto surpreendia e o sacrifício era pequeno perto dos benefícios no crescimento da criança. Emocionalmente triturada, mas serena, Clarice, agora mãe de um filho que não existe mais, descreveu o telefonema que recebeu do marido imediatamente após o ocorrido: "Eram berros de horror...impossíveis de entender". Agora testemunha de defesa, Clarice veio à mente de Sérgio lhe perguntando aos gritos: "Que monstro é esse que estava tão preocupado com os próprios problemas que esqueceu meu filho dentro do carro?".

Ao final do julgamento, a juíza Dra. Layse Dantas considerou o réu inocente. Em sua sentença, ela disse que não houve crime. Na saída do julgamento ao ser entrevistada, uma jornalista lhe perguntou: "Quer dizer que foi tudo um acidente?". "Acidente não é uma boa palavra para isso. Dá a impressão de que é algo que pode ser prevenido. Ainda precisamos inventar um nome para o que aconteceu", e saiu apressada abrindo espaço entre a massa de jornalistas.

As semanas seguintes passaram mornas por Sérgio. Ele agora vivia sozinho na pequena edícula nos fundos do quintal dos pais. A publicidade do julgamento o deixara cada vez mais recluso. Mas Sérgio também tinha dúvidas se algum dia ele poderia vir a ser novamente parte da sociedade, se era justo que ele vivesse a vida que chamavam de normal. O único perdão para seu pecado grotesco parecia ser a própria morte. Numa tarde de sábado, a porta dos fundos da casa maior se abriu para dar passagem a Clarice. Naquele dia, seria o sétimo aniversário de Guto e era inevitável pensar em como ele estaria se estivesse vivo. Clarice usava um vestido que ele nunca tinha visto, os mesmos cachos castanhos lhe emoldurando o rosto, um casaquinho de malha na mão esquerda. O olhar dela o abraçou. Ela chegou muito perto, passou as costas da mão esquerda no rosto de Sérgio e o beijou como quando ainda existe amor.   

Réu Confessoحيث تعيش القصص. اكتشف الآن