Já não entra luz

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O dia começa no meio da noite. Stan não presta atenção em nada, só no contrabaixo em sua mão, o barulho nos ouvidos. Enquanto Butters grita e Kenny se contorce desconsoladamente, ele é o mecanismo do relógio. É Stan quem pega essa coisa chamada música e a alinha com a coisa chamada tempo. Ele é a marcação, a pulsação, está por trás de cada parte deste momento. Jimmy não está mais em South Park, portanto, nada de baterista para a Crimson Dawn. Kenny tirou a camisa, Butters está exagerando, e Stan está por trás deles, como o gerador. Está ouvindo e não escuta porque o que toca não é algo sobre o qual raciocina, mas algo que o toma por inteiro. Todos os olhares estão nos três. 

Ou pelo menos é o que Stan imagina durante sua cegueira no palco. O espaço é pequeno, eles fazem um barulhão, e ele é o baixista bixessual numa queercore band - antes punk - que enche a sala de murmúrios enquanto o outro bi - Butters - canta aos berros. Kenny está a toda e Stan está viajando legal, embora seus pés não se mexam. Olha a luz e vê pessoas se sacudindo, pulando. Atira as cordas para os amigos, marcando o tempo tão alto que eles têm de ouvir.

E então ele a vê na multidão e se desintegra.

Mas que porra? Stan se lembra de tê-la dito para não vir. Enquanto ela estava ocupada desfazendo-o em pedaços, esse era o único fragmento de si que implorou a ela que deixasse. Por favor, não vá aos shows. 

Não quero ver você lá. E ela disse sim, e na hora não foi mentira. Mas em algum momento passou a ser. E Stan se vê sem o menor controle emocional, tudo em sua volta vai do grito ao choro — tudo isso no tempo que leva para ver o formato de seus lábios. E depois vê — ah, caralho, não — que ela não está sozinha, que está com um cara. Acabou, disse ela, e isso não soou como a maior mentira do mundo?

Stan está cambaleando nas notas, Butters chegou ao verso seguinte e Kenny toca um pouco mais rápido do que deveria, então ele tem de correr atrás do prejuízo enquanto ela se inclina para o cara e balança a cabeça como se estivesse fazendo esta música para ela, quando, na verdade, se pudesse, Stan pararia com tudo e dedicaria a ela um silêncio equivalente à dor que ela o deu.

Agora faz uma pausa, esperando pelo fecho. Kenny parece estar à beira de um solo, que nunca é um lugar muito seguro para ele. Stan mexe os pés, desvencilha-se dela, procura fingir que ela não está presente, o que é uma piada tão escrota que nunca o fez rir. Para tudo com uma última guinada. A multidão faz barulho. Stan procura ouvir a voz dela, tenta distinguir aquele tom único entre gritos e aplausos. Mas Wendy está tão distante quanto estava na noite em que ele chorou e ela nem se virou para ver se o moreno estava bem. Três semanas, dois dias e 23 horas atrás. E ela já está com outro. 

A banda seguinte está na lateral do palco. O dono do clube gesticula que o tempo da Crimson Dawn acabou.

Mas Stan não está tão na urgência de fugir dali a ponto de não se sentir recompensado pelos pedidos de bis, por aqueles gritinhos de decepção quando as luzes se acendem e revelam à multidão o caminho do bar. Ele é o roadie que se fode neste espetáculo. Então, enquanto Kenny pula na multidão e encontra sua admiradora mais apaixonado, e Butters sai de fininho para encontrar com alguém, Stan tem de imediatamente se recompor para poder guardar o equipamento. Vai dos acordes às cordas, da introspecção à ralação.

Um dos caras da banda seguinte é gente boa e o ajuda a pegar as caixas que estão no fundo do palco. Mas Stan é o único que pode tocar nos instrumentos, colocá-los com cuidado para dormir à noite. Depois se oferece para ajudar a nova banda a se preparar e fica feliz quando eles aceitam; assim ele pode conectá-los ao painel de som em vez de consumir toda sua energia resistindo a ela.

Seus olhos ainda estão acostumados a procurar por ela numa multidão. Sua respiração ainda está acostumada a parar quando a luz está no ângulo certo e a vê. Seu corpo ainda está acostumado ao dela se movendo ao lado do dele. Então, a distância — qualquer falta de contato — é uma rejeição constante. Sete anos. E em cada um desses anos o desejo dele encontrou novas maneiras de ser incitado por ela. Acabou, e isso não pode ser o fim. Todas as canções que compôs em mente foram para ela e agora Stan não consegue evitar que elas toquem. Essa trilha sonora de uma puta história.

Fica de costas para o público enquanto guarda o equipamento e os instrumentos em um lugar seguro. Logo chega o momento em que não dá mais para ficar de costas, afinal, é bem limitado o tempo em que se pode ficar encarando uma parede sem se sentir um idiota. Então Stan é salvo pela banda seguinte, que coloca o volume ainda mais alto e logo instaura em todos um lindo caos. Atreve-se a olhar a platéia e não a vê mais.

Acha que Wendy vai gostar dessa banda, e saber isso o apunhala de novo, porque agora tudo o que sabe que ela gosta é completamente inútil. Pergunta-se quem é o cara, se eles se conheciam três semanas e três dias atrás. Stan está feliz por não tê-lo visto direito, porque acabaria pensando nos dois juntos sem roupa. Agora pensa só nela nua, e é uma lembrança tão nítida que seus dedos chegam a se mover para tocá-la.

Eu não posso te consertar, ela disse e Stan escorregou num universo paralelo, porém verdadeiro - uma dimensão onde o término chega antes do fim. Wendy não estava mais em nenhum lugar que ele pudesse alcançar. 

Ainda gosto dela | Stendy!Where stories live. Discover now