Capítulo único

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Carolina. Sim, é o meu nome. Sim, minha primeira vez aqui também... Pelo menos desse lado. Posso começar? Ou seria melhor: por onde começar?

Desde sempre ouvi falar de zumbis, isso é normal, todos sabem. As crianças na minha escola também sabiam. Zumbi é uma pessoa que morreu e voltou, mas voltou diferente. O indivíduo passa a encontrar dificuldade em se socializar, adquire uma fome fenomenal por carne e precisa de um cuidado constante com a higiene. A primeira vez em que tive contato com um zumbi ocorreu quando Hector, meu colega de classe, convidou alguns alunos para ver a "monstruosidade" que havia na casa dele. É comum o parente zumbificado ficar em um quarto separado da casa, onde as visitas não visitam e as aparências de família perfeita se mantêm. Zumbis são um fardo nojento e doloroso que não tem voz contra aqueles que os escondem. Não me recordo direito como era a avó do Hector — eu estava no fim da fila e mal pude vê-la quando a turminha da frente voltou correndo de medo, me arrastando junto deles —, mas o som, disso eu me lembro, o barulho de uma cadeira riscando o chão. Os colegas confirmaram a vista que eu não vi: a avó do Hector estava amarrada ao móvel. Pobre mulher. Não me surpreendeu ela tentar escapar daquele quarto-prisão... Quem mais não tentaria?

Meu próximo contato demorou anos para acontecer e foi mais profundo do que minha breve visita à avó do Hector. Há quem diga que quem é mordido por um zumbi se levantará como um após morrer, mas testes comprovaram que isso é só um boato. De acordo com os especialistas, não se sabe o fator exato que conduz um morto a uma segunda vida, porém muitos acreditam ser hereditário — um gene recessivo ou alguma coisa assim. O último caso de zumbificação na minha família tinha ocorrido antes de eu nascer; nunca pude conhecer minha bisavó porque decidiram que uma eutanásia seria a solução mais "humana" — na verdade, foi a solução mais viável para eles. Então, quando meu tio-avô Vitório morreu, toda a família se reuniu no hospital. Nossa tristeza durou uma hora inteira após o anúncio de que o ataque cardíaco o havia levado para longe de nós, até que meu primo — filho do meu tio-avô — e a esposa dele foram chamados à sala do médico. Quando retornaram, eu pressenti o que iriam dizer.

— Zumbificado.

Foi uma única palavra que saiu da boca do Otávio, mas causou uma reação impressionante. Todos mudaram a expressão de enterro para "Circo dos horrores" como se muda um canal na televisão, exceto eu, que preferi ver um desenho nostálgico a um filme de terror.

— E agora? — minha prima Mônica perguntou, com a mão tapando a boca como se tivesse medo de que alguém pudesse sentir seu mau hálito.

— Optei pela eutanásia. É melhor acabar logo com o sofrimento dele. Então... se quiserem ter um momento para se despedir...

Mais uma troca de expressões, dessa vez de "Circo dos horrores 2" para "tem uma barata nos meus pés!". E tia Ângela — quem mais tinha baratas nos pés — precisava deixar clara a opinião sobre elas.

— Credo! Se despedir do quê? Aquilo nem deve mais ser humano.

Senti a ofensa do meu tio-avô por ele. Qual era a definição dela para ser humano? Por que, que eu me lembre, eles ainda consideraram a tia-avó Rosa como humana mesmo depois da primeira morte definitiva. Então, após a segunda morte o tio Vitório voltaria a ser humano?

— "Aquilo" é o nosso tio. — Eu não poderia ficar calada diante daquele argumento insustentável. — E não é no sofrimento dele que você está pensando. — Me dirigi a Otávio, pois também não poderia deixar que nossa família continuasse sustentando as "soluções viáveis" do que fazer com o meu tio.

Otávio fez cara feia, do mesmo jeito que sempre fazia na adolescência quando nós, primos pequenos, quebrávamos o mouse dele ou gastávamos todos os créditos dos jogos do celular dele. Sabia que ele estava louco para me dar uma bronca, mas, assim como quando éramos crianças, ele jamais brigaria comigo na frente dos mais velhos.

Meu ente querido virou um zumbi, e agora?Where stories live. Discover now