Capítulo 1

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Henri revirou os olhos pela vigésima vez no dia, sem vontade nenhuma de fingir entusiasmo para com o baile que ocorreria em duas horas. Seu melhor amigo, por outro lado, adorava irritá-lo tanto quanto adorava bailes. Logo, fazia 15 minutos que ele estava escutando um interessantíssimo monólogo sobre as danças- e as dançarinas- francesas.

—Ora, vamos, será divertido. Sabe que não há festas em todo o mundo como as de Versalhes.— disse o herdeiro do trono, que estava sendo paparicado por toda a sua equipe de beleza.

—Isso ainda será a vossa ruína. —o rapaz murmurou, a voz saiu abafada por culpa do travesseiro sobre a cabeça. Luís um dia governaria toda a França, porém era reconfortante saber que não faltava energia e vitalidade nesse velho homem.

Foi a vez do príncipe revirar os olhos. Ele levantou-se da cadeira, já pronto.

—Olhe e diga-me como estou.— ele dispensou os criados, colocando a mão na cintura e exibindo uma pose de herói.

Tudo o que seu amigo fez foi espiar por baixo da fronha.

—Parabéns, conseguiram te deixar mais pálido do que já é.— ele voltou à posição anterior, desviando por pouco de um chapéu de abas largas que acertaria seu abdômen.—Você sabia que o seu pai não é o único sol que existe, não é?

—Por que eu sairia se tenho um palácio inteiro para mim aqui? Ademais, já há gente desagradável o bastante dentro desses muros, não preciso de mais do outro lado.

Henri sentou-se e bagunçou os cabelos pretos com a mão. Então, levantou as mãos para centralizar o amigo, como se ele estivesse posando para um retrato.

—Você está um autêntico Luís número sei-lá-o-quê.—ele fingiu que limpava uma lágrima.—Por baixo dessa peruca de cachorro eu vejo um belo rosto de... espera, isso é gesso ou pó de arroz?

Luís bateu o pé, irritado, mas não contestou.

Por sorte, mordomos como ele não precisavam usar roupas da realeza, muito menos comparecer a bailes. Não que ele amasse sua casaca e seus culottes descoloridos, mas pelo menos não tinha dois quilos de cabelo sobre a cabeça.

Uma hora e meia depois, porém, Henri e o herdeiro do trono francês estavam no salão de baile, saudando convidados e rindo de bajuladores.

—Melhore essa cara, está parecendo que vai matar alguém.—Luís sussurrou para o seu mordomo, que o ignorou.

—"Delfim da França é tragicamente assassinado por seu belo e gentil mordomo". Talvez eu ficasse um tempo preso, mas eu encantaria a todos com o meu charme facilmente.

Henri viu que o príncipe pretendia retrucar, porém um estrondo ecoou pelo salão antes que pudesse fazê-lo. O barulho por si só não teria causado tanto caos, se não fosse pela multidão curiosa se atropelando para ver o que acontecera e pelo burburinho que logo se espalhou como uma brisa repentina.

Ah, sim, e também teve o grito histérico.

—O que foi que você fez?

Quando a voz masculina estourou os tímpanos de todos os presentes, Henri já estava no centro da confusão. Não sabia dizer o que mais chamava sua atenção naquela cena.

De um lado, um nobre de queixo erguido, nariz empinado e roupas espalhafatosas gritando insultos. Do outro, uma jovem criada de cachos ruivos estava no chão, recolhendo vidro em uma bandeja de prata. Sangue escorria da sua mão, mas seu rosto indicava apenas raiva. Muita raiva.

—Pode juntar esses cacos o quanto quiser,  sua pulha sans-culottes! Nem se você limpasse o chão por 100 anos conseguiria pagar a roupa que acabou de estragar.

—Quem é esse louco?—Henri perguntou, virando-se para o príncipe, que encarava a cena embasbacado.

—Leopoldo I da dinastia dos Habsburgo, rei da Áustria-Hungria e de uns outros reinos. Ele se acha um pouco por causa do queixo.

—Tudo isso por umas costuras mal feitas. Quando alguém da família morre deve começar uma guerra mundial.

Luís soltou uma risadinha, mas sua expressão logo formou uma carranca com o desenrolar da cena.

—O que você acha que o seu rei vai pensar, hã? Eu farei você apodrecer numa cela no subsolo. — então ele a puxa pelo braço com certa violência, sussurrando em seu ouvido algo que fez a menina franzir o cenho com mais força.

Foi quando Henri achou que já estava na hora de dar um basta.

—Finalmente te encontrei! Revirei todo esse palácio a sua procura! Vamos, ao trabalho!

Quando a moça lançou-lhe um olhar assustado, ele quase deixou-se distrair com seus olhos cor de âmbar, porém logo tratou de aprofundar a carranca.

—Achou que eu não notaria a sua fuga? Querendo aproveitar a festa, hein?—ele puxou-a pelo pulso, tentando parecer bronco e furioso sem, contudo, usar de muita força. Então olhou ao redor, como se só naquele momento percebesse o tumulto, e fez uma rápida mesura para o círculo dos presentes.

—Perdão, Vossas Altezas, Excelências, Majestades... Levarei essa ajudante preguiçosa de volta para a cozinha.

Ele tentou arrastá-la até a saída mais próxima, mas Leopoldo soltou mais um gritinho:
—Espere, essa mulher é uma criminosa! Deve pagar por...

—Deixe comigo, Majestade. Dar-lhe-ei uns bons puxões de orelha e trabalho dobrado. Onde já se viu, escapar assim...—e acelerou os passos até o fim do salão.

Quando viu-se nas sombras, a jovem soltou-se e brindou-lhe um sorriso.

—Obrigada. Não sei como sairia dessa sozinha.

—Não foi nada. Lido com loucos há anos, pobre de você que tropeçou em um. — respondeu e recomeçou a caminhar.

—Na verdade, ele quem tropeçou em mim.— ela esfregou o antebraço e começou a praguejar, seguindo-o pelos corredores de Versalhes.

—Eu te machuquei? Por favor, me perdoe. Estava apressado, creio que não medi a minha força, então...

—Não foi você, a culpa é daquele idiota.

Henri parou, segurou-lhe o braço e ergueu a manga do vestido, esquecendo-se totalmente de pedir permissão. Ela era delicada, aparentava ter sua idade, apesar de ser mais baixa que o mordomo. A moça corou, mas ele estava observando a marca de mão que manchava a pele alva de vermelho e roxo, abaixo do ombro. Ele travou o maxilar, maldizendo o rei desprezível em todas as 10 línguas que conhecia.

E somente então ele se lembrou da mão da garota, que deixara um rastro de sangue e já estava formando uma poça no chão onde eles se encontravam. Evitando olhar fixamente para o ferimento, ele retirou o lenço ridículo de seu pescoço e envolveu em volta do corte desleixadamente.

—Estanque o sangramento. Vamos para a enfermaria.—anunciou, o odor pungente de ferro intoxicando seu sistema.

Então, com o intuito único de evitar que a menina desmaiasse, Henri pegou-a no colo com gentileza e carregou-a até a enfermaria.


1058 palavras.

Sangue AzulWhere stories live. Discover now