Prólogo

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O vai e vem dos carros na avenida abaixo somente adquiria a nomenclatura de ruído sob os gritos advindos da mesa de canastra dominical. A fumaça na sala de estar era uma ameaça olfativa aos tapetes de camurça que lembrava-se de uma vez apreciar. Agora, tudo o que queria era vê-los queimar como qualquer coisa dentro daquele apartamento que nem por um mísero momento encarara como um lar. Vê-los queimar, tal como os móveis de fino mogno que adornavam paredes creme. Uma cela sem grades. Tal como os azulejos dos corredores que ecoavam seus passos surdos. Queria assisti-los sendo consumidos por impiedosas labaredas, tudo aquilo que a prendia, aquilo, aquele, ele.

Os homens sentavam-se em cadeiras altas em torno de uma mesa redonda, enquanto ela preparava o que seria seu jantar: uma salada temperada com o salgado de seu desgosto e o neutro de seu desprezo. E praguejava em silêncio o odor de tabaco e levedo. Encostada na pia suja, prato na mão, devorava quietamente seu desamparo. Vestia uma saia preta que denunciava as curvas de suas pernas, e nos dedos rubis de um vermelho-sangue agraciavam os olhos dos lordes que nunca chegariam a beijar o dorso de suas mãos. Parada em saltos altos, beliscava o interior de sua boca com os dentes, e ocupava seu paladar mais com o gosto metálico do sangue que com o insosso de sua refeição.

E o ar era fétido e impuro.

Não lavou o prato do qual comeu. Largou-o na pia entulhada ao som do seu nome, e cuspiu no chão ao passar com a garrafa em mãos. Gelo no vidro que imaginava adentrando violentamente o avantajado pescoço de seu marido, em uma nobre missão libertadora. Suportou de cabeça erguida e postura superior os olhares sujo direcionados à sua silhueta, culposamente marcada sob o tecido de seda fino. Encarou os homens de forma evasiva. Sentiu a pesada mão acariciar suas nádegas enquanto batia em retirada. E os risos eram como cacos perfurando sua já injuriada dignidade. Prazeres do ego causados pela prepotência. Sua face contorcia-se em um vazio. Vazio este contaminado pelo nojo. Imaginava-o deitado naquele tapete de camurça, já sem vida, enquanto ela ria descontroladamente entre baforadas de um charuto de encontro aos lábios pintados do batom vermelho de tom mais vívido. E saltos altos de encontro ao olhar perdido do cadáver. A morte, tão terna e quieta, transformada em agitada fantasia, frequente sonho, crescente desejo.

Inegável anseio.

No auge de seus 32 anos, presa ao magnata que prometera-lhe uma vida digna. Porém pessoas não são acordos comerciais ou produtos estocáveis. Ou bens transferíveis à luz da primeira casa decimal à direita.

A soma que propunha alimentar as bocas que a haviam apresentado como comércio havia sido significativa. Mas agora desejava que seus pais estivessem na mais podre miséria possível à raça humana. E andaria por onde eles se arrastavam em uma quase inexistência, olhando para o céu.

Sorriria em direção ao firmamento enquanto os olhos sedentos a implorassem pela sobrevivência, tamanho o nojo que acumulava.

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⏰ Last updated: May 28, 2018 ⏰

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O Veneno da BorboletaWhere stories live. Discover now