HALLALI

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A cor favorita de Hallali era lilás. Da sua caixa de lápis de cera, era o menor.

Todas as flores eram lilases, todos os vestidos, todas as casas também. Até o cachorro no seu pedido de presente de aniversário era dessa cor; a irmã mais velha escreveu o bilhete, mas, para ter certeza, a menina ilustrou exatamente o que queria ganhar.

O desenho atual era o quinto pronto. O sangue seco grudado nos seus pés já nem incomodava mais.

A garotinha continuava rabiscando enquanto esperava a mamãe, o papai ou a mana se levantarem do chão. Eles faziam poses engraçadas. Ela tinha feito retratos de todos – nunca tinha usado tanto vermelho, o giz já estava quase no fim.

Aconteceu uma coisa – mas como não tinha aprendido a olhar as horas ainda, não sabia há quanto tempo atrás.

Foi de madrugada que bateram na porta. Enquanto o pai foi atender, a irmã disse para ela brincar de esconde-esconde embaixo da cama, e só sair se mandassem.

Hallali ouviu a voz de desconhecidos... e choros... e gritos... depois ficou tudo em silêncio. Quando cansou da brincadeira, saiu do esconderijo e viu seus familiares naquelas posições estranhas.

Enquanto decidia sobre o tema do próximo desenho, sentiu frio. Não era semelhante àquele dos dias em que amanhece tudo branco e úmido; como se estivesse chovendo, mas não está. Era uma coisa gelada que vinha de dentro, mais ou menos do estômago.

Hallali olhou para a porta, parado na entrada estava um moço que ela nunca tinha visto antes.

Ele usava uma longa roupa preta, um amontoado de tecidos velhos, e uma máscara de baile que cobria metade do rosto. O moço esticou sua mão pálida e esquelética em direção à menina, ela prontamente pulou da cadeira e correu em sua direção. Os dois saíram da casa lado a lado.

Algumas pessoas os viram caminhando juntos. Hallali estava tão feliz em ter um novo amigo – tinha cansado de esperar os pais acordarem –, abanava para todos que passavam. A maioria fingia não vê-los, outros faziam caras esquisitas e começavam a rezar, uma senhora velhinha até desmaiou.

Ainda andaram por mais um bom tempo.

– Qual seu nome? – perguntou ela.

– Tenho muitos.

– O meu é Hallali.

– É um nome pesado demais para alguém tão pequeno.

A garota sorriu e se segurou num dos farrapos de roupa do seu acompanhante, por medo de se perder.

Finalmente chegaram a uma pracinha, cheia de brinquedos e um balanço na árvore. A menina ficou maravilhada, e logo puxou seu amigo em direção ao parquinho vazio.

– Podemos brincar ali?

– Você pode. Vá!

– Quero que você brinque comigo – e pegou ele pela mão.

– Não posso ir lá.

Assustada, abraçou as finas pernas perdidas no meio do manto, e chorou como nunca antes.

– Não vou sozinha, não quero mais brincar assim.

O moço se abaixou para ficar da altura dela. A olhou por algum tempo, observando aquele rostinho inchado pelas lágrimas e pálido pelo medo.

– Não me deixa aqui, por favor – implorou mais uma vez.

Ele tirou o capuz e desatou o nó na fita que prendia a máscara. A garotinha se distraiu olhando o ritual, foi o que a fez parar de chorar. Ele colocou o adorno na criança, ficou desproporcionalmente grande, e disse:

– Pronto, vamos voltar.

E Hallali viveu por mais um longo período entre os outros que pareciam com ela. Com o passar do tempo, aprendeu a não contar sobre sua aventura: as pessoas pareciam não entender direito a história.

Ela e seu amigo se reencontraram diversas vezes. A mais triste delas foi enquanto Hallali estava dava à luz ao primeiro filho. Muito zangada, amaldiçoou tê-lo conhecido um dia.

Na vez seguinte, foi por causa da febre do seu marido.

– Você não pode fazer nada?

– Não.

– E por que pode fazer por mim?

– Não sei.

– Ao menos, poderia tentar?

– Sinto muito.

– Existem outros como eu?

– Não existem mais.

– O que aconteceu com eles?

Mas o moço havia ido embora, e ela se viu sozinha no quarto.

Na terceira vez, as pessoas estavam realmente furiosas com a Hallali. Eles chamaram-na de coisas horríveis, a machucaram e disseram coisas muito feias a seu respeito. E os presentes, mesmo os que se diziam seus amigos, acreditaram naquelas (quase todas) mentiras.

O povo da aldeia juntou vários pedaços de madeira numa pilha e a amarraram no centro. Quando a fumaça começou a subir, ela pode ver o moço mascarado parado em meio à multidão.

– Por que eles estão fazendo isso comigo?

– Você me conhece a vida toda e viu minha verdadeira face. Desde então, deixou de ser um deles.



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Nota: Hallali é uma palavra francesa. É o som da trombeta usada durante as caçadas para avisar que um animal foi abatido.

Os poetas do mesmo país a usam para se referir ao "som da morte que se aproxima".

HallaliWhere stories live. Discover now