A sentença de Iaceê

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Capitania da Baía de Todos os Santos, 1594.

Iaceê parecia inesperadamente calma quando os três homens vestindo pesados panos lhe tiraram à força de sua oca e arrastaram seu corpo contra os ásperos cascalhos do chão de terra que abriam feridas nas suas pernas e costas. Iaceê ignorava o sangue vermelho que escorria dos ferimentos e secava com a poeira que se levantava do chão para macular sua pele. Ignorava a dor como que anestesiada pelo curare, a morte eminente. A expressão era plácida, olhos elevados àqueles que a arrastavam sobre o chão pedregoso. Eles, os homens brancos, portugueses a serviço da Coroa, pareciam evitar o olhar pungente da jovem índia. Quando puxaram seu corpo sobre um seixo mais pontiagudo, rasgando sua coxa num ferimento violento, Iaceê limitou-se a baixar seus olhos, serenamente.

Pouco mais de três anos era o tempo quando deixaram de contar os condenados e seus crimes. Iaceê era mais uma apanhada pelas garras da Santa Inquisição que trouxe à Capitania da Baía de Todos os Santos o Tribunal do Santo Ofício. Brotava nas terras férteis da Colônia uma feitiçaria selvagem e obscura que ameaçava os domínios da Coroa tanto quanto o judaísmo e o protestantismo na Europa.

A herege. Ao menos era assim que entendiam quando aos olhos estava o estigma da bruxa marcado no braço esquerdo de Iaceê pelo ferro incandescente. A marca que atravessou a pele e queimou sua carne gravada pelas mãos pesadas de Heitor Furtado de Mendonça, o Licenciado escolhido para liderar as investigações da fé do Santo Ofício nas terras coloniais. O homem que chegou em 1591 com sua sepultura já aberta. Uma moléstia que lhe acometeu enquanto cruzava as águas salgadas do Atlântico minava suas parcas energias levando-o a aportar gravemente enfermo, moribundo.

Nunca se explicou como ele deixou sua sepultura vazia numa recuperação misteriosa e impensável. O fato é que em pouco tempo Heitor Furtado desfilava um corpo firme e saudável, e não demorou para construir como herança um comando maniqueísta e cego aos deveres da Santa Inquisição.

E nessa herança estava também Iaceê. Não se conheciam suas feitiçarias ou mandingas. O julgamento de Heitor Furtado marcado na pele da índia pelo ferro abrasado bastava, aos olhos de todos.

Mas nem o ferro que maculou a pele de Iaceê colocou na sua face uma expressão de dor ou pavor. A índia permanecia calada, branda, altiva. E assim continuou quando amarraram seus pulsos e pés num tronco de madeira com tanta força que a corda deixava contusões em todos os seus membros. E não se alterou nem mesmo quando retiraram a mortalha do seu abdômen e expuseram seu corpo nu. Quando a levantaram e a colocaram no centro das lenhas cuidadosamente alinhadas que aguardavam para arder nas chamas sagradas da Inquisição.

Iaceê encarava com dignidade aos que assistiam a mais um Auto da fé na praça central. Aqueles que se inquietavam com sua expressão digna que se manteve até ser tragada pelos braços ardentes do fogo. Manteve-se enquanto o ar era preenchido com o odor asqueroso da carne queimada e com a sentença vinda de Heitor Furtado de Mendonça, perdida diante do estalar das chamas e dos murmúrios da multidão.


Distante o suficiente para os olhos não alcançarem, mas não o bastante para se escapar dos estremecimentos que a condenação de Iaceê produzia e que despertavam sensações além daquelas dos sentidos humanos, outra índia, um pouco mais velha que aquela cuja vida era levada pelas ambições da fogueira inquisitória, se encontrava em sua oca, sozinha.

Ela lançou um grito prolongado e intenso de dor. O berro atravessou as paredes de argila e se perdeu no vento, sem ninguém para ouvir. Uma queimadura sem motivo aparente rompia do seu braço esquerdo. Era a marca que identificava os hereges, visível apesar da pele escaldada, do músculo queimado e do sangue que borbulhava e escorria pelo braço. A mulher se contorcia, convulsionava-se violentamente. Derrubou duas cuias derramando um líquido escuro pelo chão da maloca. Marcas arroxeadas surgiam em seus pulsos e tornozelos. Num espasmo intenso a índia espalhou alguns ramos de ervas próximos a dois maracás e a um cocar que ostentava grandes penas coloridas. Seu corpo ardia numa dor ainda mais intensa. Ela se ajoelhou antes de se deixar tombar no chão quando irromperam marcas de queimaduras por todo o seu corpo tingido pelo vermelho do urucum.

A sentença de IaceêWhere stories live. Discover now