Prólogo

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            Aquele local era o meu refúgio. Não era lá tão grande, mas, aos meus olhos de criança, parecia a maior casa de todas. Um verdadeiro castelo. Limpo, aconchegante e tinha um cheiro tão bom... cheiro de lar.

E era para lá que eu fugia sempre que me sentia triste ou solitária. Como naquela noite de inverno em que saí do apartamento onde morava enquanto meu pai dormia e, vestida com pijama e calçando apenas meias, corri pelas ruas já praticamente desertas, pela distância de quase duzentos metros até chegar ali. Como de costume, pulei o muro, escalando o grosso caule da jaqueira até chegar a uma das janelas do segundo andar, por onde entrei sem fazer cerimônia. O quarto estava escuro, mas a cama se encontrava vazia. Com o auxílio da luz da rua que entrava pela janela, finalmente avistei a pessoa que procurava. Uma menina da minha idade, onze anos; paradoxalmente tão parecida e tão diferente de mim. Nutríamos os mesmos gostos: comidas, programas de tevê, bandas, até cor preferida. Mas, fisicamente, formávamos uma dupla corriqueiramente chamada de bizarra, tamanhas eram as nossas diferenças. Eu sempre fui muito alta para a minha idade, magrela, e tinha um cabelão castanho bem comprido e volumoso. Já a outra menina era bem baixa e gordinha. Tinha a pele muito branca, marcada por sardas, e os cabelos loiros, bem lisos, num corte acima dos ombros, com uma franja reta. Se na aparência éramos distintas, o mesmo se poderia dizer das nossas personalidades. Enquanto eu tinha um jeito bruto e não gostava de me preocupar muito com as coisas, ela era extremamente delicada e sensível. Não à toa, eu sempre me via obrigada a protegê-la e consolá-la.

Afinal, não é isso que fazem as melhores amigas?

Só para variar, era o que eu sabia que aconteceria ali. Afinal, ela estava sentada em um canto do quarto, abraçada a um cachorro de pelúcia, enquanto chorava baixinho. Bufando, fui até lá e me sentei ao seu lado.

— Que foi agora? — Minha pergunta tinha o tom de impaciência que me era padrão, provavelmente desde que aprendi a falar. Aos onze anos, eu não tinha a preocupação de ferir os sentimentos das pessoas.

Talvez não tenha até hoje.

Sem dizer uma palavra, ela apontou para o computador. Levantei-me e fui até lá, mexendo o mouse para tirar o descanso de tela. Quando o monitor acendeu, compreendi o motivo do choro: tratava-se da página da nossa escola em uma rede social. Na postagem aberta, um engraçadinho postava uma lista de "barangas" do colégio. Minha amiga estava na lista, e um monte de babacas comentava embaixo fazendo piadinhas ridículas citando o nome dela.

— Imbecis... — rosnei, furiosa. Fui novamente até Luana, voltando a me sentar ao seu lado. — Não liga pra esses idiotas, Lu!

— Por que fazem isso comigo? — ela choramingou.

E essa, talvez, fosse a maior diferença entre nós duas. Eu, no lugar dela, socaria a fuça daqueles moleques, um a um! Como, aliás, eu já havia feito algumas vezes, quando também implicavam comigo. E inúmeras outras vezes, quando o alvo era a Luana. Eu sabia me defender. Ela, não. Sofria, chorava... e aquilo me dava ainda mais raiva!

— Eu vou me vingar deles, por você! — comuniquei, já começando a elaborar um plano, que me renderia uma suspensão de dois dias.

Secando o rosto com as costas das mãos, ela me olhou e sorriu, agradecida. E percebi que o agradecimento não era pelos planos de vingança, mas simplesmente por eu estar ali. Porém, ela sabia que havia um motivo para eu ter ido até lá. E desconfiava de qual era.

— Está triste? — A voz dela trazia a doçura que já lhe era padrão.

— Um pouco — confessei. Não havia lágrimas, feições abaladas, nem lamentos. Com essa pouca idade, eu já era quase tão durona quanto sou hoje em dia. Porém, Luana e eu nos conhecíamos desde o jardim de infância, tempo mais do que suficiente para que ela me conhecesse tão bem.

— Sua mãe não ligou hoje de novo?

Movi a cabeça em uma negativa. Logo que foi embora, minha mãe me ligava todos os dias. Com o passar do tempo, o intervalo entre as ligações foi aumentando, mas aquela era a primeira vez que demorava tanto. Já havia se passado duas semanas desde o último telefonema.

— Ela deve estar ocupada com o novo bebê — Luana se referia ao meu recém-nascido meio-irmão, fruto do novo casamento da minha mãe com um cara feioso que eu até então só tinha visto duas vezes na vida.

E foi aí que comecei a falar. Contei que estava com raiva daquele bebê, do meu novo padrasto e, principalmente, da minha mãe. Emendei o assunto falando do meu pai, que andava mais chato do que nunca, e, quando me dei conta, voltávamos a falar sobre os babacas do colégio, e a Luana já gargalhava com os planos loucos que comecei a elaborar para me vingar por ela.

Quando vimos, já eram quatro da manhã, e eu não me sentia mais sozinha. Nem ela se sentia triste.

Decidi que dormiria por lá mesmo, e Luana puxou a cama de rodinhas que ficava embaixo da dela, onde me deitei. Após fechar a janela, Lu deitou na cama de cima e, logo que se cobriu, me chamou:

— Ei, Becky... Me promete uma coisa?

— O quê?

— Que seremos amigas para sempre.

Achei graça e pensei em fazer alguma piada com a pergunta. Mas, sabendo o quanto Luana era sensível, resolvi simplesmente responder:

— Claro que seremos. Pra sempre.

Mas esse "sempre",infelizmente, um dia chegou ao fim.    

Destinos de PapelWhere stories live. Discover now