O dia em que decidi morrer

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Acordei cedo naquela sexta-feira. Uma nublada manhã sem grandes atrativos. Outono. Folhas secas sobre as calçadas e ruas. Vento frio agitando os galhos. Meu corpo estava quente pelas cobertas, mas precisava levantar. Despedida. Era meu último dia.

Pode parecer estranho decidir morrer. Quando penso no passado, reconheço que vivi muitas boas experiências. Meus pais são amorosos, não tenho acusações para culpá-los. São apenas um casal idoso vivendo longe. Nem sequer imaginam que o caçula desistiu da vida. Será um golpe para eles e, talvez, esse seja o único fator que me manteve persistindo. Lutando. O motivo não é o meu passado, na verdade. Até amigos tive. Com alguns ainda troco mensagens. Vazias. Acho que não pensam muito em mim. Têm seus problemas para enfrentar. Eu escolhi o que fazer com os meus.

O motivo é essa rotina. Quando acordo e me olho no espelho, não vejo nada do que me orgulhar. Antes, passava minutos observando minhas olheiras e me perguntando quando começaram a se tornar tão acentuadas. Agora, simplesmente perdi a vontade de ver a mim mesmo. Depois que cobri o espelho do banheiro com um papelão, descobri que não me fazia falta. Me ver não fazia falta. E essa realidade me atingiu de um jeito cru, dilacerante e terrivelmente natural. Ninguém me liga há meses. Meus pais estão felizes sem mim. Meus vizinhos educadamente me cumprimentam, mas nunca jogamos conversa fora. Desperdício. Perder tempo com bobagens nunca foi minha melhor habilidade.

Sempre fui reservado. Acho que apenas perdi a tênue distinção entre a privacidade e a solidão. Não sei quando comecei a me sentir assim. Sinceramente, não importa. Eu passei pelos dias, os dias passaram por mim. Fui ao trabalho, sentei em minha escrivaninha, conversei ao telefone com os clientes, resolvi problemas, paguei contas, chequei e-mails. Fumava no terraço às vezes. O ato me fazia sentir um pouco menos enfadonho. Preencher meus pulmões com fumaça tóxica era algo que geralmente surpreendia as pessoas. Algo que não esperavam de mim. Melhor assim. Gostava de pensar que podia ser diferente do que imaginavam. Mas nunca consegui ser diferente o suficiente para me tornar interessante.

Queria ser outra pessoa.Não alguém especificamente. Nenhum ator, produtor, cantor ou empresário. Apenasoutra pessoa. Se interessa, queria ser o oposto de mim mesmo. Então, por que simplesmente não mudo radicalmente? Você quer me fazer essa pergunta, eu sei. Não é como se não tivesse pensado nisso. Não é como se não tivesse tentado. Eu simplesmente percebi que, se minha vida não parecia importante sendo quem sou, por que pareceria sendo quem não sou? Comprar roupas que jamais usaria ou até mesmo redefinir minha carreira não me tornaria diferente por dentro. Eu continuaria sendo o cara que não sente falta de ver a si mesmo no espelho. Ou talvez fosse o cara que, ao encarar seu próprio reflexo, só o suportasse se ostentasse outra aparência. Não quero ser nenhum deles. Nem o cara que sou, nem o cara que poderia ser. Eu não quero ser. Então, não serei.

Lancei as cobertas de lado, finalmente. Pés descalços no piso gelado. Arrepio. Não tenho ar-condicionado ou qualquer outra tecnologia que me permita aquecer o ambiente. Será que o próximo morador providenciará isso? Provavelmente. Sempre disse que limparia aquela mancha de infiltração do andar de cima. Nunca fiz. Eu também nunca pendurei aquele quadro que comprei numa viagem de negócios, há mais de um ano. Não tinha pregos. Ainda não tenho. Talvez alguém goste mais dele, ou talvez ninguém lhe dê o devido valor. Embora nunca o tenha pendurado, sabia que estava ali. Sabia o que representava. A figura de uma mulher numa ponte, tingida com a cor dourada do amanhecer. LembravaAlice. Nunca mais a vi.

Já me apaixonei uma vez. Meu coração nem sempre esteve entediado. Foi na faculdade, quando nos corredores cruzei com uma estudante de Artes Plásticas. Ela era colorida. O lenço amarelo em seu cabelo castanho, o vestido azul cheio de pequenas flores brancas, as unhas tingidas de um vermelho-sangue, as bochechas rosadas, os lábios... ah, os lábios. Não quero falar deles. Basta dizer que o sorriso dela era vibrante. Eu, monocromático, parecia até mais alegre perto dela. Na verdade, a vida também era. Fomos juntos a uma cafeteria, conversamos sobre cinema e teatro. Eu não entendia nada sobre pintura. Mas entendia dela. Eu a absorvia. Ela era uma militante, queria lutar pelos direitos de si e dos outros. Eu não conseguia acompanhar seu raciocínio libertário. Eu não conseguia reagir aos seus comentários. Sentia-me cada vez mais superficial com ela. Ao mesmo tempo, sentia-me cada vez mais dependente. Ela se tornou, na convivência, minha melhor parte. Ser seu namorado, seu rolo, seu parceiro de sexo... era minha melhor qualidade. Não havia mais nada em mim que merecesse alguma atenção. Não diziam meu nome. Diziam-me "o cara da Alice". Sem ela, sem ela... Acho que a pressionei. Depois de Alice, prometi que não me apaixonaria de novo. Posso não ser alguém de destacada personalidade, beleza invejável ou companhia notável, posso nãoser necessário, mas definitivamente sou bom em cumprir promessas.

O dia em que decidi morrerWhere stories live. Discover now