Pesadelo

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O velho desperta agitado após um longo sono, durante o qual sonhara estar em um velório onde quem estava sendo velado era ele próprio. Repousava em um caixão simples ornamentado com crisântemos, sua tez morena apresentava uma coloração pálida típica de corpos desprovidos de vida, em seu rosto as marcas que o tempo incutira estavam mais realçadas, contrastando com um ligeiro sorriso estampado em sua face. Ouvira alguém dizer que morrera dormindo, portanto o sorriso indicava que tivera bons sonhos, talvez tenha sonhado com sua infância na fazenda de seu pai lá na serra da Bocaina, ou quem sabe com o curto período em que fora feliz em seu casamento. Trazia em suas mãos o relógio de bolso dado por seu neto, cujos ponteiros marcaram os últimos momentos de sua vida. Logo após o primeiro impacto de ver-se sendo velado, voltara seus olhos para seus entes que se encontravam na capela, identificara entre os rostos alguns netos, bisnetos e sobrinhos, seus dois irmãos ainda vivos, um ou outro amigo, e apenas alguns de seus filhos, logo descobrira, ouvindo algumas conversas, que nem todos os seus filhos estiveram presentes até o momento. A ausência dos outros filhos o fizera refletir sobre como fora bruto e insensível com eles, justo os mais novos, justamente aqueles que mais quiseram seu carinho e afeto durante suas vidas inteiras e só receberam vociferações, impropérios, desatenção. Isso o marcara profundamente, queria poder voltar no tempo e tentar reparar seus erros, mas era tarde demais uma vez que o tempo não volta e as feridas por ele provocadas em seus corações são como chagas que não cicatrizam. Queria ele ao menos a chance de pedir perdão, mas não tinha mais tempo e esse não costuma atrasar, o caixão seria lacrado e o que em breve restaria dele seriam apenas lembranças , que pouco a pouco com o tempo se apagam da memória dos que ficam e em breve ele seria apenas um nome em algum documento das gerações vindouras ou na lápide de seu túmulo, uma foto num álbum de família sem signicado para quem não o conhecera em vida. Quem mais sentiria sua falta seriam seus netos e bisnetos que não conheceram aquele homem truculento de outrora e sim aquele velho de cabelos grisalhos, sorriso simpático e voz mansa que aos cativara e tentara na medida do possível ser com eles o pai que não fora para seus filhos. Agora que despertara e se recompusera de seu pesadelo, tivera por um instante uma súbita vontade de sair correndo ao encontro de cada filho e implorar-lhes perdão e dar-lhes o beijo e abraço que nunca dera, mas logo pensou que seria em vão, virou-se para o lado e voltou a dormir.

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⏰ Last updated: Jan 22, 2017 ⏰

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O velho pai Where stories live. Discover now