Noite na taverna

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Seria uma noite mansa e agradável, estrelas cintilantes e lua cheia como vigiando a cidade; não estivesse esta envolta em uma névoa gélida de infelicidade e solidão. Aprisionada nas meninas de meus olhos como uma lenta melodia, uma saudade, um poema de despedida.

Estamos no ano de 1852, precisamente, em uma viela um tanto lúgubre cujo único ponto de luz e vida é uma taverna conhecida por todos os boêmios da região. Seu dono é um gaulês, homem de proeminente barba ruiva, expressão de poucos amigos e, para amedrontar ainda mais, vultoso como um viking. Guarda uma espada na parede atrás do balcão, que afirma pertencer à família há milênios e ter ajudado a derrotar o Império Romano. Ronald é seu nome, é um sujeito misterioso e dizem que vem de Praga. Suas bebidas, corre à boca miúda, são as melhores. Há quem diga que as envenena com chumbo de um adoçante usado pelos romanos, que teria inclusive enlouquecido o Imperador Calígula.

Na Taverna do Gaulês, o furdunço vai madrugada adentro. A fumaça de charutos e cigarros perpassa cada rosto, a embriaguez do absinto, sorvido aos poucos, comove um coração em exílio. O absinto foi inventado por um médico francês no século XVIII e é uma das bebidas mais embriagantes de que se tem notícia. Há que se ter cuidado com a loucura do absinto, mas também ele consola uma alma em desespero.

Sozinho em uma mesa redonda no canto da taverna, pensamentos degradantes me assaltam. Fere-me uma perda irreparável. Uma moça com quem iria me casar. Seu pai proibiu terminantemente nosso casamento nesta mesma noite. Em poucos dias, a filha vai para um convento. O nome dela é Madalena e eu a amo com todos os meus suspiros. Eu quis propor a ela uma fuga, mas a donzela infame não me quis ouvir. Ela tem medo do pai, como um homem teme um lobo feroz. De fato, é assim o pai dela. Um animal. Uma fera em pele de fidalgo. Disse ele que eu era sujeito pobre demais para me casar com sua filha, e, assim, preferia uni-la ao Senhor a entregá-la a um futuro desgraçado comigo.

Eu fui humilhado e me roubaram toda a honra esta noite.

Vejam, eu venho de família humilde. Baixa burguesia. Tintureiros.

Eu, naquela taverna intumescida por luxúria e emoções exacerbadas, sou um poeta e também estudante de Direito. Fui colega e, creio, melhor amigo, de Álvares de Azevedo, o grande romântico. Mas Álvares há poucos dias se foi. Doeu-me, sinceramente. Sei que tombou de seu cavalo no Rio de Janeiro, em férias, e se lhe agravou a saúde. Já largara o curso por convalescença. Disse-me ele, escrevendo, sentir o bafejo da morte próximo de seu peito.

Meu bom amigo Álvares é que me falou desta taverna. Uma vez a conheceu com um tio, sei que apreciava as desventuras da noite, embora em secreto. A Taverna do Gaulês. Contou-me, poucos dias antes de fenecer, estar apaixonado por uma moça portuguesa cujo pai prometera a um barão. Uma moça belíssima, disse que me iria apresentá-la em breve. Recitou-me meu amigo um poema seu, "Lira dos Vinte Anos", logo antes de viajar para a terra de seus pais onde, precocemente, faleceu. Sonhando.

Quero eu contar a meu bom e sensível amigo de minha tristeza, entender-me-ia e beberíamos com o diabo para esquecer. Eia, bebamos! Mas também Álvares se foi, e tudo se foi nesta noite na Taverna do Gaulês.

Eis que estou sozinho em uma mesa recôndita com um copo quase vazio de absinto, cruel redentor. Parece esfriar, embora seja verão. Da janela miro a lua cheia, tão fulgurante que amedronta. Já me corre a embriaguez nas veias, não mais me é claro o fato ou o pensamento. O amor ou o ódio.

Levanto os olhos. Não estivesse ébrio, assustar-me-ia. Uma figura distinta e sem dúvida intrigante me olha. Rosto magro, macilento, barba escura bem-feita, chapéu negro, veste um fraque embora em uma taverna. Não sorri nem demonstra nenhum movimento na face. Os olhos são de um negro enigmático e abissal. Por um momento eu o examino. Não o conheço, por certo.

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⏰ Last updated: Apr 01, 2017 ⏰

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Noite na taverna - um contoWhere stories live. Discover now