Capítulo Único

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O olhar da doce donzela se mantém quieto por um longo período de tempo. Distraída em seus próprios pensamentos, cujos enredos são as causas de minhas indagações, a moça acaba por despejar em sua coxa o líquido quente e negro que há segundos saboreava. O grunhido que escapa de sua boca me torna alerta. Dor.

Enquanto trata de arrumar a bagunça que fez, persisto minha atenção em suas íris. Estou a acompanhá-la há sete dias, desde que roubei a alma leve de seu pai, a qual minhas mãos receberam com honra. Há sete dias seus olhos estão tristes e saturados. Há sete dias por uma humana senti-me admirado.

Não sei ao certo o motivo de meu encanto. Sua alma, o que mais me interessa, é totalmente oposta à minha direção. Vívida, esperançosa. Sinto pena por sua ilusão. Mas há algo em seu ser que me envolve por inteiro, mesmo que sejamos antônimos em todos os aspectos.

Sofro quando tenho que deixá-la. Dou uma volta pelo globo cumprindo meu dever. Uma, duas, três semanas. A única coisa que tenho em mente é ela: a herdeira de cachos morenos e uma expressão serena. Não sei ao certo o que penso, talvez eu tente entendê-la. Exato, tento entendê-la, contudo é uma tentativa em vão. Observo um enigma, para o qual parece nunca ser possível encontrar uma solução.

Lá está ela novamente. Depois de meses da ida de seu pai, a jovem agora se permite sorrir. Perco-me num mar de fascínio; o quão esplêndida uma criatura pode ser? Poderia apreciá-la pela eternidade, poderia tê-la pela eternidade, daria a morte por ela. No entanto, e ela? Apreciaria-me? Desejaria-me? Daria a vida por mim? Levanto questionamentos já levantados anteriormente em alguns de meus devaneios; questionamentos, por ora, sem respostas.

Depois de milhares de almas, decido que minhas frequentes perguntas feitas, até então, somente à mim, devem ser ouvidas por outro alguém. Por ela. Mas como fazê-la ouvir? Como uma medíocre humana poderia escutar um culto espírito? A medíocre humana teria que se transformar num culto espírito e o culto espírito teria que ser transformar num medíocre humano.

Pronto para ter minhas questões sanadas pela adorável mulher, visto-me com o corpo de outro alguém e a espero numa rua específica, por onde a vejo caminhar todos os dias. Contudo, agora não é mais possível acompanhar seus passos.

Não há esperança que me preencha, entretanto, desistir não me é uma boa alternativa. A única opção é escutar as respostas saírem de seus lábios. Com as mãos nos bolsos da calça jeans azulada, sigo em frente de cabeça baixa. Ao caminhar, o corpo do qual sou inquilino se esbarra em outro, que, graças ao destino, pertence àquela que desejo ter. Faço algo que nunca me imaginei fazendo: sorrio para a humana de cachos exóticos, e surpreendo-me ao ver a reciprocidade em seus gestos.

— Perdão — sutilmente suplico.

A moça apenas assente e, após longos instantes, continua seu caminho até o fim da rua.

Ainda com o sorriso nos lábios, dou alguns passos para trás pretendendo voltar para o mesmo lugar de antes com o intúito de esperá-la até o próximo dia. No entanto, o que desejo não está ao meu alcance; tenho um trabalho a ser feito.

Lamento, portanto, ao ter que deixar o corpo que tomei posse para cumprir meu dever por todo o mundo com a minha real identidade.

Centenas de almas depois, é um novo dia.

Enquanto me locomovo em direção à localização da dona de meus pensamentos, penso num modo sutil de lhe perguntar sobre o que pensa da morte. Estou numa situação delicada, afinal, humanos, em sua maioria, abominam o que chamam de perder a vida. Ignorantes, como sempre, acreditam que o ato de morrer seja aquilo que denominam de "final do túnel", seja lá o que esta expressão tola signifique. Na pior das hipóteses, digo-lhe que, caso morresse, eu receberia sua alma em meus braços com graça e leveza. Talvez minha admiração e meu respeito a conquistem.

EspectroWhere stories live. Discover now