Prólogo

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"Eu te amarei, querida, sempre. E estarei lá por toda a eternidade."

(Always – Bom Jovi)

3072, Álcaton.

— Heather, Heather! O que foi que você fez? — ouvi Nicholas gritar.

As sombras escuras e cálidas se espalhavam depressa pelo céu, meus olhos estavam cravados nos olhos amarelos daquele homem prostrado em frente à minha varanda, minhas mãos, trêmulas, seguravam a caixa preta quase sem força.

Podia ouvir os passos apressados de Nicholas pelos corredores me chamando cada vez mais alto, na medida em que sua voz se aproximava dos meus aposentos.

— Heather!

O ruivo de olhos amarelos me olhava fixamente e me sentia hipnotizada por ele, ao mesmo tempo meus músculos estavam imóveis, nem minhas pálpebras eram capazes de tocar uma na outra me fazendo piscar. Ele era alto, com cabelos flamejantes e um sorriso de muitos dentes pontiagudos, tinha olhos enigmáticos e se escondia embaixo de um sobretudo preto, na verdade, tudo nele parecia guardar alguma coisa que o fazia estar dez casas à frente no jogo.

Senti suas mãos tocarem meu abdômen, era como se pegasse fogo, mas eu sequer conseguia ver seus dedos negros, fui consumida em completa dor e agonia, sentia que toda minha pele se derreteria deliberadamente naquele toque. Ainda que eu não pudesse gritar ou me mover, eu sentia e sentia de dentro para fora o calafrio misturado a uma soma incomensurável de calor e, por fim, a dor, cortante, sufocante. Eu queria gritar e eu gritava, mas ninguém podia ouvir, meus lábios estavam fechados, afinal.

Acordei sem fôlego agitando meus braços desesperadamente no ar, em seguida, dei um grito agudo e firme, até me dar conta de que tudo não passava de um sonho ruim.

Naquele momento, meu quarto fora invadido de forma brusca por alguns soldados, levei uma das mãos aos olhos baixando a cabeça, na medida em que erguia a outra mão fazendo sinal para que eles se afastassem. Meu coração estava acelerado e eu ainda tentava recuperar o fôlego sem tempo suficiente para impedir que Annie entrasse e me abraçasse.

— Mãe, você ainda tem esses sonhos ruins? — Annie parecia bem preocupada ao perguntar isso.

— Está tudo bem, Annie — respondi a garota com firmeza.

— Eu sei que não está, mãe. Você tem esses sonhos desde que me conheço por gente. Não houve uma noite sequer em que o palácio não foi assombrado pelos seus gritos.

Revirei os olhos e tornei a olhar para Annie que, por sua vez, também revirava seus olhos.

— Filha...

— Está tudo bem, mãe. — Ela me abraçou novamente pousando minha cabeça no seu ombro, naquele momento, me senti pequena e sem forças para dizer mais nada.

Claro que eu não tinha todo controle do mundo sobre meus sonhos, ainda mais quando eles me assombravam há tantos anos.

Então ela prosseguiu:

— Um dia você vai precisar me contar o que te assombra, ou contar para alguém, não pode viver assim para sempre — ela falou com ternura no olhar. — Além disso, um dia vão interná-la num manicômio. — Então ela riu.

Eu ri em seguida. Claro que não existiam manicômios mais em Álcatron desde que nos tornamos Estado do Novo Mundo, mas era curioso pensar na quantidade de coisas que conseguimos resgatar da grande guerra nuclear e, por sorte, parte dessa tecnologia do holocausto havia mesmo se perdido. Provavelmente meu manicômio nunca passaria das paredes de pedra do nosso Palácio.

O manicômio seria o menor dos meus problemas agora. O segredo que eu carregava era perigoso demais para ser jogado ao vento e, também, Annie ainda não estava pronta, só tinha 15 anos.

— Ainda não é o momento, Annie, existe um tempo certo para tudo, todas as respostas virão, você precisa ser mais paciente e aprender a conviver com a palavra "não". — Sorri para Annie e beijei sua testa, ela se levantou me deixando sozinha.

Annie era minha filha, minha única herdeira, assim como era, também, a única herdeira de Nicholas, meu marido e, também, rei.

Graciosidade não era um dom muito presente na Princesa Annie, seus cabelos ruivos, muito diferente dos meus e dos de Nicholas, apesar de longos, tinham corte assimétrico e picotado deixando evidenciado que minha filha se fazia cobaia das próprias ideias. Seu rosto tinha traços pontudos que lembravam um triângulo, era franzina e tinha aqueles olhos confusos azuis, provavelmente se não fosse monarca como nós, passaria despercebida por aí.

Era uma menina completamente perdida, desastrada e desajeitada, algumas vezes se distraía e outras tampouco se lembrava onde estava, parecia que sua cabeça sempre viajava para outra dimensão, porém muito amorosa e sempre muito paciente comigo e com a minha doença.

Não que eu tivesse uma doença incurável, mais precisamente, mas algo mudou dentro de mim. Fazia poucos milênios que o mundo havia se reerguido e, então, chamado de Estado do Novo Mundo. Os humanos e outros seres vivos se concentravam na parte habitável do planeta que já não era mais dominada por radioatividade. E nessa parte, nós estávamos reinando com graça e glória. Novos seres e novas espécies se formaram, dizem que foram criados e trazidos da natureza, eles conviviam com a gente e nós convivíamos com esses seres em plena harmonia.

Naquele tempo, o tempo em que assumimos o trono, Nicholas e eu sonhávamos com um herdeiro, tínhamos tudo que qualquer um poderia querer, um casamento cheio de amor, um reino todo para nós e paz.

Ah, como eu sinto falta daquela paz!

Certo dia, uma mulher veio a mim clamando por ajuda e eu neguei, fui castigada a nunca poder gerar herdeiros. Anos se passaram sem que Nicholas e eu soubéssemos o que fazer, tentamos por anos nos apoiar um no outro e não perder a esperança, até que nosso casamento esfriou.

Em uma tarde qualquer, já bem afastada dele, não digo fisicamente, mas com nossos corações já afastados um do outro, eu caminhava pelo jardim entediada, quando encontrei uma pequena caverna próxima ao lado oeste do reino, nunca tinha percebido aquela construção natural ali, mas ela existia e era realmente enorme.

Lancei meu corpo para dentro daquele lugar.

Aquele homem ruivo, o mesmo dos meus sonhos, apareceu para mim, estava de costas e quando se virou e me encarou nos olhos, ele clamou por ajuda, alegou estar amaldiçoado, assim como eu estava. Senti pena e, confesso, certo receio de ser amaldiçoada novamente.

Assim foi feito.

Aquela pequena caixa de pandora continha nela todo o mal do mundo, demônios aprisionados, que eu libertei, incluindo o ruivo com quem me encontrara mais cedo. Como "agradecimento", ele tocou meu ventre e foi assim que Annie nasceu depois de muito sofrimento e vendo Nicholas se afastar mais e mais, eu, finalmente, gerei um herdeiro.

Depois daquele dia, só conseguia me sentir sozinha o tempo todo, sentia meu corpo ser consumido pela culpa, não existia um dia sequer que não me lembrasse daquela noite... e da dor, insuportável, agonizante.

E este é o segredo que eu carrego.


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