Num Caderno de Desenho

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Está esfriando. Não que antes o nevoeiro fosse quentinho e acolhedor, mas faz algum tempo que está esfriando. Já era inverno quando essa merda começou, então não sei dizer se o frio extra significa que passamos do natal. Não faço ideia de que dia seja, muito menos a hora. É sempre escuro aqui. Escuro não é bem a palavra. Luminosidade turva define, essa coisa emite luz própria por algum motivo, o suficiente pra que nenhum cadáver passe desapercebido.

Enfim, está esfriando e aqui estou, tentando fazer sentido do clima pra, talvez assim, fazer sentido dos dias. Já não sei há quanto tempo continuo vagando pela névoa, meu relógio parou de funcionar assim que foi tocado por essa coisa. O mesmo vale pro meu celular e qualquer objeto tecnológico. Antes me guiava mais ou menos pela fome, agora, como sempre que acho comida. Mas não sinto mais nada, não resta vontade de comer, nem percepção de sede. Não sei nem por que insisto em comer, pra dizer a verdade. Esse instinto de sobrevivência não faz sentido nenhum quando não se tem motivos pra viver.

Não entendo por que essa coisa não me consome de uma vez. Talvez sua forma de me consumir seja me manter refém, vendo todas as pessoas que eu conheço sendo destruídas por seus próprios pecados, ou atos aleatórios de violência. Entorpecimento dos sentidos faz isso com a gente, perdemos a razão. Vi o pobre Senhor Raven levar um tiro no meio da cara bem na porta da igreja. Não deu pra identificar o atirador, provavelmente algum ex colega meu da escola, parecíamos ter a mesma idade. Não deu tempo de identificar por que o infeliz decidiu fazer um show de fogos com a própria cabeça, caso você esteja se perguntando.

Comum aqui, isso de se matar.. Inclusive tentei algumas vezes, mas as balas da pistola do meu avô estavam velhas e uma explodiu dentro do tambor. Perdi dois dedos, mas ainda estou aqui. Nem pra morrer de infecção, ou hemorragia. Seja qual for o motivo, permaneço em vida no meio de tudo isso, invadindo casas pra poder usar o banheiro. Poderia fazer minhas coisas no meio da rua, ninguém iria se incomodar, mas a ideia de deixar essa coisa tocar na minha bunda..

Arrepios..

Prefiro não pensar nisso.

Ridículo, como se eu não tivesse visto um filho arrancando a mandíbula da própria mãe com uma barra de aço algumas horas atrás (dias? minutos?). Mas a sensação dessa merda na pele... É horrível. Gruda de um jeito que faz pinicar, como quando se é picado por aquelas formiguinhas desgraçadas, sabe? Aquelas bem pequenininhas? Não arde igual uma picada, mas a sensação de comichão irritante é de enlouquecer. Também resseca os olhos e dentro do nariz, parece que quer te envolver por inteiro, entrar em cada buraquinho, cada poro.

Momentos de paz, como agora, são escassos. Quando consigo entrar em uma casa vazia, me preocupo com a ideia de que outra pessoa vai entrar junto comigo e me atacar, achando que sou alguma espécie de delírio. Quando estou no nevoeiro, prefiro não parar de me mexer. Se paro por muito tempo, coisas estranhas acontecem. Juro que vi os quatro cavalheiros do apocalipse arrastando o que parecia ser os restos do padre Romanov presos a um arpão.

Loucura.

Acho que posso estar enlouquecendo. Tenho me perguntado se essa coisa de nevoeiro não está na minha cabeça, se não estou morando em algum tipo de lar para pacientes psiquiátricos, babando numa cadeira enquanto vários psicólogos e psiquiatras tentam entender o que aconteceu comigo. Uma crise dissociativa talvez?

De qualquer forma, estou na casa de uma amiga de infância. Costumávamos passar os finais de semana desenhando no quarto dela, criando histórias em quadrinhos. Meu personagem era sempre algum boneco palito, até hoje não consigo fazer um círculo se me derem uma moeda. Mas ela tinha talento. Inclusive, escrevo essas palavras em um de seus cadernos de desenho. Se algum dia você chegar a encontrar esse caderno de novo, Kimi, quero que saiba que adorei o esboço do cachorro na quarta página, consigo ver o movimento do pulo e até ouvir ele latindo. Talvez eu só esteja com saudades do meu cachorro. Não faço ideia do que aconteceu com ele. Não vejo nenhum animal comum no nevoeiro, talvez todos os bichos de estimação tenham se dissolvido.

Acho que decidi parar e escrever essas páginas como prova de minha existência. Sei lá.. Uma forma de dizer: é possível! Eu sobrevivi a névoa! (pelo menos por enquanto). Meu objetivo, na verdade, era escrever uma espécie de guia de sobrevivência, não um diário adolescente, cheio de confissões e desabafos. Foda-se, faz muito tempo que não tenho com quem conversar. Algumas coisas precisam ser ditas. Catarse, Freud, aquela coisa toda.

Posso sim listar algumas dicas de sobrevivência, talvez ajude alguém, vai que eu consigo morrer um dia desses e alguém que realmente queira viver encontre esse caderno? Bom...

Dica número um: não carregue armas. Não servem para nada além de te machucar, meu vizinho que adorava passar tardes de domingo rachando lenha? Passei por ele na beira do lago, cravado em uma árvore, machado preso no peito, punho fechado em rigor mortis nos cabelos da filha de 4 anos. Dela só sobrou a cabeça.

Dica número dois: tente encontrar os limites da cidade, acho que essa merda não se espalhou pras cidades vizinhas. É só um palpite, mas é o que estou tentando fazer, encontrar uma saída. Único problema é que parece não ter saída nenhuma, se orientar sem enxergar direito é difícil. São poucas as vezes que reconheço alguma coisa, como a casa da Kimi, ou a igreja. O hospital fica aqui perto, posso tentar ir para lá, procurar remédios pra minha mão. Ou não. Não sei. Não sinto dor e meus cotocos parecem cauterizados.

Dica número três: se perder um sapato, trate de encontrar outro o mais rápido possível. Rasguei a sola do meu tênis escalando uma pilha de metal retorcido, esqueleto do que imagino que tenha sido um grande acidente de carro. Prossegui de pé descalço por um tempo e só digo uma coisa: péssima ideia. Você não consegue ver aonde pisa e tem de tudo no chão dessa cidade. Sangue empoçado, vômito, cacos de tudo o que é coisa. Você pode acabar escorregando nos intestinos de um primo, ou nos miolos da sua namorada. No meu caso, tropecei no que sobrou do Oficial Pundik e meu pé foi parar dentro da boca dele. O estalo da mandíbula quebrando é algo que não sai da minha cabeça. Os dentes dele arranhando a sola do meu pé, um canino prendendo na minha meia, a língua macia, gerando resistência contra meu dedão invasor. Acredite, melhor não ter que passar por uma coisa dessas.

Dica número quatro: se estiver em dupla, sempre de a mão para o coleguinha. Presenciei uma cena ridícula perto do shopping. Um grupo de 4, 5 pessoas correndo em direção a um carro, estavam perto uns dos outros, mas sem nenhum contato físico. Claro que ia dar merda. É nessas horas que o nevoeiro decide engrossar. Ai você está ferrado. Aquele menino, Jay, morto. Se tivesse segurado a mão da coleguinha, estaria seguro no carro com eles.

Inclusive, dica número cinco: se encontrar um carro que funcione, dirija como se não houvesse amanhã (mas com cuidado, coisas aparecem do nada no meio do nevoeiro). Ainda não tive essa sorte.

Acho que ouvi alguma coisa.

Fique atento aos sons. O nevoeiro faz tudo parecer estática. Tudo o que não é estática, pode e vai te matar. Parecem passos. Mas não faz sentido. Tranquei a porta quando entrei e não ouvi ninguém tentando forçar. Também estou cuidando a janela. Outra dica. Quando em uma casa estranha, sempre fique perto de uma janela. Assim pode monitorar o lado de fora e pular se precisar fugir.

Tem alguém aqui comigo, tenho quase certeza. Da pra sentir a presença através da estática. Até o som de uma respiração distante é detectável, se você se concentra o bastante. Não tenho mais tempo, tenho que ir embora.

Confesso: de viver e de morrer, tenho medo.

O Nevoeiro - Manual do UsuárioWhere stories live. Discover now