Capítulo 1 - Tudo um dia acaba

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É engraçado como toda a nossa vida pode mudar em apenas algumas horas. Eu estava acostumada a acordar todos os dias às seis em ponto, e como a Bierksack High School fica ao lado da minha casa, eu podia demorar um tempão. E demorava mesmo, principalmente quando cismava que o meu delineador gatinho não estava perfeito ou quando tinha ficado até tarde assistindo séries de TV.

Então eu ia para a aula, e sempre gostava dela. Melissa — ou Lissa, como ela mesma prefere — se sentava ao meu lado e Aharon, meu namorado desde os 13 anos, se sentava atrás de mim, e ficava brincando com os meus cabelos espantosamente loiros a aula toda.

E aí, o recreio, onde nós conversávamos e fazíamos piqueniques frequentes, mesmo no frio. Eu tinha a vida perfeita, pelo menos para mim. Além disso, minha família era a melhor possível, e meus pais sempre me apoiaram no que quer que fosse. Na verdade, eles eram meus melhores amigos acima de tudo.

Eu nunca gostei de segundas-feiras. E, ironicamente, foi exatamente em um desses dias preguiçosos que todo o meu castelo de contos de fadas desmoronou.

Eu devia ter imaginado. Tudo um dia acaba.

*

Naquele dia, eu andava tranquilamente até a escola quando escutei alguém gritar "Liz" atrás de mim. Instintivamente me virei, e encontrei uma Melissa sem fôlego correndo para me alcançar. Eu parei de andar e a esperei.

— Liz, você veio cedo hoje — ela disse, me abraçando. Retribuí o abraço e esperei ela dizer o resto. — Achei que fosse demorar, você sempre atrasa.

— Obrigada pela parte que me toca, Lissa — resmunguei de volta, fazendo ela rir. — É sério, também estou muito feliz em te ver nessa linda manhã de inverno.

Lissa franziu as sobrancelhas, confusa.

— O que aconteceu que você está falante assim pela manhã? Geralmente você tem um mal humor matutino muito irritante — ela continuou.

— Hoje você está só elogios para mim, hein? — murmurei, olhando quantas horas eram no relógio prata que eu havia comprado vários anos antes. — É que meus pais disseram que a noite teremos uma conversa séria. Eu tô morrendo de medo, porque todo mundo sabe o que vem depois disso. Vou me ferrar legal, Lissa.

— Deixa de ser dramática, Liz! — ela exclamou, abrindo os braços em indignação. — Provavelmente seu pai vai viajar de novo. A agência deve ter uma nova excursão esse mês, não?

Sim, tinha. Meus pais tinham uma agência de turismo, a Turist. Além da matriz no Canadá, onde moramos, tem a filial no Brasil, porque minha mãe é brasileira. Meus tios administram tudo lá, e nós, tudo aqui (na verdade nós seria errado, porque a única coisa que eu faço é dizer se os panfletos ficam legais. Mas isso a gente releva).

— Sim, e nós vamos para o Brasil nessas férias! — respondi, animada. — A única coisa ruim é que você não vai. Pede pra sua mãe de novo, Lissa, o Aharon vai.

Ela sorriu, como se soubesse de um segredo confidenciado a ela e ninguém mais.

— Você acha mesmo que vou pro Brasil pra segurar vela? — ela perguntou, incrédula, ainda com aquele sorrisinho "sei das suas segundas intenções".

Meu Deus, a Melissa é muito indiscreta.

— Você não precisa segurar vela, Lissa. Quem sabe você não arruma um namorado por lá? — sugeri, levantando e abaixando as sobrancelhas rapidamente e morrendo de rir logo depois. Ela revirou os olhos, mas estava sorrindo. — É sério.

— Eu sei que é. E eu gosto da ideia. Nada contra aquele seu primo, o Juliano, por exemplo. Super inteligente e super lindo — ela disse, na minha cara.

— Credo, Lissa! Ele é meu primo! — quase gritei, inconformada, mas morrendo de vontade de rir.

E foi isso que eu fiz, assim como ela.

— É seu primo, mas eu não estou morta, Liz. Ele é lindo, pronto. É a vida, assim como eu sou incrível.

— Autoestima equivocada é muito triste, né? — comentei, cruzando os braços.

— Ironia é deprimente, né? — ela completou, e nós nos encaramos antes de caírmos na risada novamente.

Seria ótimo se todos os dias fossem leves assim.

Pena que a noite daquele dia foi bem o contrário.

*

Chegamos em frente a escola junto com Aharon e Carl, seu melhor amigo. Fomos até eles, que também andaram até nós.

Cumprimentei Carl primeiro, e dei um beijo de bom dia em Aharon. Ele estava com o mesmo perfume de sempre, aquele que eu adorava.

— Oi, princesa! Dormiu bem? — ele perguntou, colocando uma mecha do meu cabelo atrás da minha orelha.

— Bem mal. Tô com sono. — Respondi, o abraçando.

Ouvi Melissa pigarrear, e me deu vontade de socá-la.

— Ai, quanto mel, acho que vou escorregar! — brincou, suspirando de forma dramática.

Escutei as risadas de Carl ao fundo.

— Acho que vou te bater — avisei, meio de brincadeira, meio de verdade. Poxa, será que nem dar um abraço no meu namorado posso? Pelo visto, não.

— Acho que vou sair de fininho — ela respondeu. — Vamos, Carl, deixa esses dois grudentos e chatos aí.

Os dois saíram, ainda rindo e tirando sarro da gente. Mas eu não me importava. Se tivesse Aharon por perto, nada daria errado.

Ou ao menos era o que eu acreditava na época...

Recomeços de ViagemWhere stories live. Discover now