Eterna Vigília Sobre os Mortos

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    Sou mármore cinzenta, como as nuvens dos mais remotos crepúsculos que jamais se viu e nunca mais se verá. Sou guardião eterno de túmulos e catacumbas, embebido na negritude infindável desses jazigos solitários.
    Sou Édipo amaldiçoado pelo destino. Sou um Hércules que, após as glórias dos doze trabalhos, passo a eternidade em insônia, assombrado pelos monstros que pensei ter matado. Tolo, procurei-os externos à mim. Suplantaram minha alma e alojaram-se em meu peito. Consomem meus suspiros e seus sussurros ecoam no meu vazio. Me resta apenas o zelo pelos sempiternos adormecidos.
    Com as asas abertas, encaro a estaticidade desse cemitério. Vez ou outra chegam novatos às covas próximas: ontem, um suicida; semana passada, amante findado pelas mãos do traído.
    Há anos cuja conta perdi, habita sob a mármore de meu corpo e o tampo desse túmulo, trancafiada em madeira negra, a Flor que secou ao sol de um Apolo ardiloso.
    Pouquíssimas vezes vi sua alma vagar entre os túmulos. A seda branca a arrastar-se no chão e os olhos sempre fechados. Quem me dera sangue e ossos de gente enquanto o coração da Flor batia em seu peito. Jamais a magoaria nem permitiria cair nas graças de um deus dissimulado e sedutor.
    Lembro que antes dela houveram outros. Aquele senhor feliz que viveu a comemorar em bordéis. Não se sabe o que comemorava, apenas o fazia. Antes dele, ainda, um menino. Ah, o pequenino. Guardo amorosamente a memória do minúsculo caixão branco sendo inserido sob minha guarda. Anos depois, deliberou-se a remoção. Lá se foram aqueles ossos secos e pálidos, e o crânio precariamente coberto por tênues fios prateados. Sei que os fios eram negros quando iniciei minha vigília sobre o pequeno.
    Não me é permitido sair de meu posto. Fui esculpido para isso, extraído do seio da Mãe Terra para isso, e a inspiração mórbida que primeiro se mostrou na mente de meu pai-escultor, apenas surgiu para isso: a eterna vigília sobre os mortos.
    Sei de tudo que sei sobre todos que já guardei porque os visitantes, que são raros, falam tudo que lhes vêm a mente em injúrias e desacatos, no regozijo de saber que o outro apodrece sob a terra.
    Sou meticuloso. Dou atenção até o menor dos sussurros que se fazem em minha casa. Capturo a menor das informações para conhecer meus acolhidos.
    Não só ouço. Falo, também. Murmuro pelas noites. Murmuro segredos de visitantes sacrílegos; conto aos ventos os ultrajes que ouço para que eles os carreguem embalde.
    Houveram os que se amedrontaram pelos meus murmúrios, os que assombram-se com as verdades uivantes e os que sondam pela própria sanidade após mentiras prazerosas.
    Minto, como qualquer mente. Estou eternamente aprisionado em corpo de mármore. Não há, na minha moral, o que me impeça de fantasiar maravilhas aos poetas que vêm ver os meus pequenos dorminhocos. Vejo a poesia nos olhos de quem a tem. À ouço dançar sua música devassa em cada lágrima que lhes escapa.
    Tenho irmãos e irmãs, espalhados pelas tumbas e campanários que se conhece. As noites são nossa hora de cantar. Entoar as canções de dor e nostalgia, no ritmo do cinzel que nos concebeu, nas notas agudas e graves que contrastam como a Lua prateada no céu negro.
    O corvo e a coruja repousam nos nossos ombros, apreciando nossa prisão de pedra e nossa música de morte. O corvo promete sempiternidade às almas e a coruja observa os sonhos dos mortos fluirem no vazio.
    As almas mais amarguradas choram e negam o fim. Entendo o que elas sentem. O apego ao material e a incapacidade de superar o que ficou interminado são tão aprisionantes quanto a pedra fria que me retém.
    E aqui repito: se uma única vez ganhasse sangue e ossos, desejaria que fosse nos tempos da Flor. Toda minha poesia seria para ela e sua graciosidade. E seus olhos, como adoraria vê-los, saber se têm a cor dos céus diurnos ou da noite negra, ou ainda castanhos como a terra que agora lhe acolhe.
    Meus monstros calaram-se no dia que ela chegou aqui. Não tenho um coração, mas sinto como se o meu hipotético estivesse a ponto de estourar a pedra de meu peito e quebrar-me. Nunca clamarei a deus algum a humanidade e o retorno aos tempos da jovem Flor. Sei que ela está em alguma Glória Eterna, e jamais me perdoaria se, com tal oportunidade, a permeasse com minha corrupção.
    Alguns nascem para sempiternamente sondarem a própria mente em uma pedra gélida,  apenas observando jardins inteiros nascerem e secarem sob a luz ofuscante de sóis dourados e egomanias.
    Não há o que fazer com as leis da Vida e da Morte além de obedecê-las. Ou melhor, estar eterna e involuntariamente sob seu regime.

Eterna Vigília Sobre os MortosWhere stories live. Discover now