Fome de Quê?

Felipe nasceu pobre, tinha fome. A princípio era apenas de leite e papinha, mas isto não tinha, então precisou se saciar com sopa e arroz.

Cresceu, virou criança, e agora tinha fome de feijão e carne, mas não tinha também, então precisava fazer dar com pão barato e margarina dura. A única carne que comeu era das mãos cascudas de seu pai, pedreiro, acompanhada da única bebida disponível para seu status, suor de sua mãe, empregada doméstica.

Foi crescendo assim, alimentado por esforço e sacrifício de seus pais, e por isso não passou fome um só dia.

Adolescente, teve fome de amor, mas aprendeu do jeito difícil que este não existe em SP, então sua barriga roncou por conhecimento. Lhe fora negado então, e sua fome foi fermentada pelo ódio, virou ambição.

Pai morreu. Lhe confundiram com um endividado no bar. Felipe ergueu a cabeça, andava com os manos, mas não era vasilha de barro para quebrar fácil. Por pura irritação se recusou a entregar-se ao vício, rejeitou aos bares cheios de almas vazias, e passou na faculdade abastecido pela tendinite nos dedos, a dor nas costas, e água.

Felipe cresceu, e sua fome com ele. Fome de um emprego, fome de uma casa, fome de condição para passar o mês, "é o mínimo, porra", dizia.

Sua fome sempre fora respondida com alternativas medíocres. Não conseguiu ser juíz, mas era doutor. Não conseguiu o tríplex, mas o sobrado era o suficiente, e conseguiu até dar comida quente para mamãe, Dona Silva, que finalmente descansou aos setenta e três.

Contudo, uma fome muito profunda ainda borbulhava em seu  peito. Uma fome sem nome nem rosto que o consumia como tuberculose.

Certo dia Felipe desvendou sua assassina silenciosa ao ver cenas de um policial militar derrubando uma manifestante aos empurrões, com rosto duro e olhos vazios, enquanto a grevista urrava como se ardesse numa chama de pura paixão.

Lembrou de sua infância, e de como todo mundo ao seu redor estava sujeito a tamanho sofrimento e dor. Ficou claro para Felipe que o que ele tem fome mesmo é de mudança.