A sombra

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Isabel talvez seja a funcionária pública mais competente do banco. Passou no concurso ainda bem jovem e já trabalha há oito anos no mesmo cargo. Quase nunca se ouve qualquer reclamação a respeito do seu trabalho ou mesmo da relação com os colegas por causa do seu jeitinho amável de tratar os outros. É impossível se desentender com ela. Parte do pós-modernismo foi doado à essência de Isabel e cristalizou-se naquele cabelo chanel, nas clavículas e pernas magras, nos olhos grandes que ficam no rosto claro, no vegetarianismo, na independência e na solidão. Todo mundo no banco é amigo de Isabel, mas ninguém adentrou sua intimidade. Eles sabem, porém, que no Natal a família não vem visitá-la e nunca foi vista com um namorado sequer. Ela tem um gato.
Em uma segunda feira do mês de março, como de costume, Isabel pegou o carro depois do expediente e foi direto pra casa. Sem curvas, apenas um engarrafamento e tédio. Ao chegar em casa, por causa do cansaço, acabou por esquecer a fechadura da porta aberta. Jogou a bolsa na poltrona que ficava logo na entrada e foi pra cozinha. Retirou do plástico os brócolis que havia comprado no fim de semana e fez no vapor com algumas batatas e berinjela. Como a casa é muito silenciosa, Isabel liga a smart tv num movimento automático e coloca no jornal pra ouvir as notícias. Tudo é muito certo, muito sério, ela é exemplar, mas a porta estava destrancada.
Terminado o jantar, a mulher já cansada de ver notícia ruim na tv, desliga-a. Toda noite era a mesma coisa, depois dos vegetais e do jornal ela tomava o banho com água morna e ia se deitar. Não foi diferente, Isabel entrou no box, passou o sabonete líquido com aroma de algodão e água, pegou a toalha branca e foi pro quarto. Lá estava a camisola de seda branca debaixo do travesseiro prontinha pra ser vestida. Vestiu-se e foi se deitar com o tapa olhos porque era muito sensível à luz. Lembrou-se que o chefe tinha marcado uma reunião para o dia seguinte e que provavelmente haveriam mudanças muito chatas em seu setor, mas ela não queria pensar naquilo agora, queria só dormir. Fechou os olhos e os cobriu com a máscara. O gatinho passeava no apartamento escuro em que infiltravam sutis feixes de luz dos postes da rua, ele parecia um pouco agitado naquela noite.
Houve um barulho na porta, o gato correu pra se esconder atrás da cortina da varanda. Alguém girara o trinco da porta e adentrara cuidadosamente a sala do apartamento e todo o ruído que se ouvia era baixo demais pra uma pessoa ouvir, era daqueles que só os animais de audição afinada conseguem captar. Isabel já estava dormindo a essa hora, pegara no sono em questão de vinte minutos. Nesse momento, algo ou alguém, pois não se sabe até hoje do que se tratava, já estava caminhando lentamente pela sala. Não dava pra ver o rosto, o que se tem são apenas suposições de sua altura e porte físico, que parecia muito alto, mais de dois metros, e forte. Era uma sombra atravessando a sala em direção ao quarto de Isabel, o gato se arrepiava inteiro, só se via os faróis dos olhos do animal atrás da cortina.
A sombra passou pela porta do quarto de Isabel e ficou ali de pé diante do corpo adormecido. Pela luz frágil que ultrapassava o vidro da janela admirava a imagem da moça de camisola branca. O cabelo solto sobre o travesseiro, a máscara de tecido nos olhos, a boca pequena e redonda. A criatura parecia estar gostando muito do que via pois passava lentamente os olhos se aproximando cada vez mais. Dava pra acompanhar a respiração calma de Isabel que subia e descia, subia e descia lentamente. A sombra se deslocou para as pernas dela que estavam sem o cobertor naquela noite, por isso os pelinhos se arrepiavam quando a respiração da coisa os alcançava.
De repente ela sentiu um incômodo e acordou, mas como a máscara cobria seus olhos, ela não podia ver que tinha alguém ali e apenas sentia um estranhamento, nada demais. Sentia um aroma forte amadeirado e um pouco herbal. Aquilo não se parecia com nada que ela tinha em casa, pois sempre deu preferência a cheiros suaves. Aquele era muito primitivo, masculino e era incrivelmente bom. O coração de Isabel começou a bater mais forte, ela sabia que não estava sozinha naquela casa, mas não teve coragem para tirar a máscara e ver quem era e nem pra gritar ou fugir. Ela estava confusa se realmente queria fugir, porque depois do cheiro muito bom que sentira, uma presença quente se aproximou dos seus pés e mãos febris os envolveram.
  A mão enorme da coisa era capaz de segurar os dois pezinhos frios de Isabel de uma só vez. Ela estava adorando aquilo. Era muito confortável ter aquelas mãos deslizando sobre seus pés que de frios passaram a ficar quentes. Um rosto muito peludo friccionava contra os dedinhos e uma boca quente os beijava. Isabel fingia estar em um sono profundo e se mantinha imóvel enquanto ele subia. Os braços da coisa eram tão fortes que podiam quebrar as pernas de porcelana de Isabel de uma só vez, mas sua energia não estava voltada pra esse fim. Ele apertava as pernas dela, que já mostrava sinais de falta de controle. Ela curvou as costas em um impulso e os braços da sombra passaram por trás segurando com força seu quadril. O rosto peludo encostou em seus lábios redondos e se fez um beijo vibrante. Era impossível agora parar com aquilo, a coisa já se dava conta do desejo dela que se entregava sem querer saber de quem se tratava. Mordidas, beijos, arranhões, gemidos... era a selva que tinha entrado naquele quarto, em Isabel.
Antes do sol se levantar, o quarto incendiado fazia Isabel derreter. A sombra como quem se despede beijou-a nas mãos e depois nos pés e foi embora do mesmo jeito que entrara, atravessando calmamente a sala em direção à porta da frente. A mulher finalmente caiu no sono e quando acordou não sabia se aquilo realmente acontecera ou se fora somente um sonho. Levantou-se e foi se preparar para a terça-feira de trabalho no banco, afinal, naquele dia ela teria a reunião com o chefe e deveria estar pronta. Depois do café e de colocar a farda, deixou a ração do gato no pratinho, mas não conseguiu encontrá-lo pra fazer cafuné, ele ainda tava escondido na varanda.
                    A reunião aconteceu como deveria, o trabalho seguiu como sempre e a rotina havia recomeçado, embora Isabel não conseguisse parar de pensar no que acontecera. Ela não era de dividir assuntos pessoais com ninguém, então sua cabeça martelava continuamente no acontecido: fora um sonho ou alguém entrou em sua casa? Se não foi um sonho, então ela se envolveu com algo desconhecido. Que coisa era aquela? Era humana? Diversos pensamentos ao longo do dia. A única certeza que tinha era de que depois de tanto tempo sozinha, aquela visita fora muita boa. De noite, ao voltar pra casa, resolveu não trancar mais a porta.

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⏰ Last updated: Nov 03, 2017 ⏰

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