por dentro

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Meu nome é Caren, Caren fea, Caren tonta, Caren flaca. Caren assim mesmo, com C. Nunca é só Caren. Caren e ponto. Era sempre assim. Caren fea, Caren tonta, Caren flaca. Jogo bola melhor que menino e ai de quem não me deixar ir no ataque. Rolo por cima e encho a cara de tapa. Sou menina, mas não sou fraca. Sou menina forte. Menina mulher, como mãe diz. Mãe deu de achar que eu estou engordando. Faz eu comer menos. Alargou as camisetas. Pareço agora uma bandeira. Caren bandera. Perna fina e barriga. Não sei de onde veio a barriga. Meus irmãos riem. Dizem que eu engoli melancia. Ninguém engole melancia. Moleques burros. Não sabem nem jogar futebol. Ficam no gol. No gol. Lugar de perna de pau. É sim. Eu sou atacante. Agora canso um pouco. Acho que é por causa da barriga. Barriga danada de grande. Cresce sem eu ver. Sem eu comer, nem beber. Mãe me olha por trás da fumaça do cigarro. De lado. Com aqueles olhos que ela aperta quase fechando pra ver a gente melhor. Fica no canto do quintal, encostada de lado, uma mão cruzando a cintura e a outra com o cigarro na boca. Uma perna apoiada na outra. Parece uma cobra fumando. Cobra não fuma, eu sei. Mas parece. Ela é magra como eu. Ela é magra como eu era. Agora com essa barriga, não sou magra não. Não corro tanto mais. Os moleques vão querer me tirar do ataque. Mais ai de quem fizer isso. Não quero nem ver a cara do moleque. Tirando o Juan, ele eu não encaro. Moleque bem grande. Sem barriga. Grande mesmo. Vive com a cara amarrada. Vive com roxo na cara. Mas não sou eu quem bate nele não. Nem outro moleque nenhum. Deve ser gente maior. Maior e pior que ele. Pior que o olhar da mãe. Aquele olhar miúdo e agudo que passa por dentro. Ela deve fazer isso mesmo. Ver a gente por dentro. Acho que ela sabe o que tem dentro de mim. O que me deixa com a barriga estufada. Sabe, mas não fala. Ela não fala muito. Olha e fuma. E fica lá parada. No quintal ou na frente de casa. Quando tá na calçada, ela conversa com o Pablo, do outro lado da rua. Nunca ri. Conversa com ele e me pede pra ir na casa dele. Eu vou. Vou mas não gosto. Dói. E não gosto. Mas é rápido. E ele sempre me pede pra levar dinheiro pra mãe. A mãe então me olha apertado e acende outro cigarro. Depois pega o dinheiro. E some pela rua. Mas ela volta. Sempre volta. Meus irmãos correm pra ela. Abraçam. Eu não consigo. Os braços sempre estão cruzados. Como se abraça alguém com os braços assim torcidos em frente ao corpo? Não sei. Mas meus irmãos sabem. Me dá raiva. Aqueles moleques são tão burros. Não sei como sabem coisa que eu não sei. Muita raiva mesmo. Disfarço que não ligo. Um dia pego ela com os braços descruzados, daí me jogo bem no meio. Como bola no gol. Abraço mesmo. Bem apertado. Pra barriga achatar na dela. E ela abrir os olhos bem arregalados, pra me ver inteira. Toda eu. Inteira. Moleques burros. Nem sabem chutar bola. Eu sei. Eu e o Juan. Ele tem a cara feia. Feia mesmo. Mais feia que eu e a barriga. Fala nada nunca. Ninguém fala. Da barriga. Acho que deixaram assim pra eu descobrir o que é. Moleques burros. Acham que eu não vou? Vou sim. Eles vão ver. Já estou até sabendo o que deve ser. Devo saber já. Na rua, no campinho, as pessoas olham sem olhar. Pensam que eu não vejo. Aquele jeito de olhar. Não é apertado, não, é bem aberto, bem inteiro. E depois olham pra outro lado. Já sei o que é. Um dos moleques, uma vez, apareceu no campinho cheio de pintas vermelhas. Feio mesmo. Mais feio que a barriga. Vermelhas e feias. As mulheres olhavam pra ele daquele mesmo jeito. Arregalado e espiado. Era doença. Todo mundo pegou. Moleque burro. Deve ser doença. Doença difícil de pegar nos outros, mas doença. Doença de barriga. Por isso a mãe nem me abraça. Não quer pegar. Mas os outros moleques não ligam. Nem o Pablo, do outro lado da rua. A barriga dói. E cresce. É doença mesmo. Doença da barriga. Mas, deixa eles. Eles todos. Eu vou saber o que é. Vou mesmo. Sou mais esperta que aqueles moleques burros e eu não preciso olhar por dentro de ninguém. Ninguém mesmo. Mas essa de olhar doído, como a mãe, isso eu acho que peguei. Outro dia foi em casa uma mulher bem gorda. Bem gorda inteira e não só na barriga. Gorda na perna, gorda no braço, gorda até na cabeça. A mãe levou ela pro quintal onde eu estava estendendo roupa branca. Roupa branca é a pior. Tem de deixar no sol, na bacia, e passar pedra com sabão até limpar. Branco bem branco. Depois colocar no varal bem esticado. Fica todo branco o quintal. Com brilho. E os olhos se apertam pra ver. Como os da mãe. Vai ver que é por isso. Meus olhos estavam bem apertadinhos e a mulher gorda veio me ver no quintal branco. Eu olhei pra ela daquele jeito, apertado. Não vi nada por dentro dela, mas deve ter doído, doído mais do que o olho roxo do Juan. A mulher gorda chorou. Eu olhava apertado pra ela e ela chorava. Sem nem falar, nem gemer, sem um ai. E eu não conseguia parar de olhar. Olhava apertado e não conseguia parar. As lágrimas eram gordas como ela e rolavam até o queixo. Ela me abraçou e eu não tive nem tempo de cruzar os braços. Não gostei. Suado e gordo. E cheio de lágrimas gordas. Ela veio só um dia. Me abraçou e abraçou a mãe. Falava baixinho com a mãe e eu não escutei nada. Apertei a orelha pra ver se eu escutava melhor, mas não consegui. Acho que isso de apertar era só pro olho mesmo. A mulher gorda sumiu. Não gostei dela. Mas gostei muito da comida. Acho que a mulher gorda deixou comida em casa. Depois daquele dia, a mesa sempre tinha comida. E a mãe não ralhou mais da barriga, nem da roupa que eu devia usar larga. Fui até no hospital com ela. Um dia só, mas fui. Ela não me abraçou, mas me pegou pelo braço, forte e apertado. E me puxava pra eu andar mais rápido. Andamos muito. E sempre com a mão apertada no meu braço. Puxava e arrastava quase correndo pela rua, puxava e arrastava. Meu chinelo assobiava passando na terra quente. Cantava. E eu não reclamava. Era o meu braço na mão dela. Eu tentava andar rápido, mas ela ia mais na frente. Puxando e arrastando e meu chinelo cantando. Quando chegamos ao hospital, arrebentou a tira de meu chinelo. A mãe me olhou com aquele olho apertado dela e eu nem olhei de volta. Tinha medo de doer, como doeu na mulher gorda. O chinelo arrastava mais ainda. Uma mulher de branco me deu outro par. Ela olhou de um jeito novo pra mim e pra mãe. Era um olhar diferente. Meio bom, meio mau. Não sei o que era. Mas não devia ser de doença. Ela cuidava dos doentes. Ela trabalhava no hospital e disse que era enfermeira. Eu fiquei bem quieta. A mãe ficou bem quieta. Nem fumava. Mas deixou os braços passando pelo corpo, apertado. A enfermeira levou a gente pra um homem médico. Ele me olhou bem olhado, por tudo. Eu não gostei, mas não falei nada. A mãe não falou nada. Ele só disse que eu estava embaçada. Não entendi muito. Ele falava rápido e no alto, ele era bem alto. E falava só pra mãe. A fala dele não abaixava pra eu escutar. Acho que ele pensou que eu não escutava ele. Ou que eu era burra como aqueles moleques. Não sou. Não sou burra. Eu estava embaçada. Era isso. E era essa a doença. Era por isso mesmo que a mãe me olhava apertado. Não me via direito. Eu devia ser uma menina embaçada. Isso devia fazer a barriga crescer. Era isso mesmo. O dia do hospital foi curto. E a volta foi igual à vinda. Igual. A mãe me puxando e arrastando. E eu andando com os chinelos novos. Meio grandes, mas sem cair, sem cantar mais. A enfermeira de branco tinha me dado chinelos que não cantavam. À noite, a mãe falou comigo. Assustei bem. Ela chegou no quintal e disse que eu ia pro hospital um dia aí, um dia aí, e que eles iam tirar a barriga. Que a barriga ia sumir e eu ia voltar pra casa. Eu fiquei um pouco feliz. Dormi feliz, acho. Acho que rindo. A mãe tinha falado comigo. Falado tão direto que até esqueci do abraço. Nem lembrei de ver se tinha ou não braço cruzado. Falado direto nos olhos. Os olhos bem iguais aos meus. Bem amarelos. Amarelos como os de gato. Amarelos como essa terra. Amarelos como os dentes dos moleques burros no campinho. Sempre rindo de mim. Rindo e falando besteira. Não entendia muito. O povo fala estranho nessa terra. A mãe sempre viajando. Fumando, arrastando, puxando e viajando. Mas falou comigo. Olho no meu olho. Bem dentro. Dormi feliz eu acho. No outro dia, fui correndo pro campinho. Estava quase vazio. Os moleques burros brigando. O Juan com a cara amassada. O nariz sangrando. Ninguém chegava perto dele. Moleques burros. Eu não sou de encarar o Juan. Ninguém era. Mas eu fiquei lá. Tinha vontade de correr e marcar um gol. Estava feliz, eu acho. Fiquei lá, parada, com as pernas magras e a barriga explodindo. O Juan veio vindo. Como cachorro. Olhando pra baixo. Olhava a terra amarela. E veio vindo. E parou perto de mim. Agachou no chão amarelo, com a cabeça baixa, sangue pingando do nariz. As gotas eram gordas, como a lágrima da mulher gorda. Fazia barulho quando caia no chão. Formou uma mancha vermelha no chão amarelo. Ia empoeirando. Ficando tudo laranja. Amarelo, vermelho e laranja. Ele falou. A voz dele era nada do que eu imaginava que seria. Não era de moleque. Ele falou. Demorei a ver que ele falava comigo. Ele disse que ia embora. Embora e longe. Falou enrolado como aqueles moleques burros. Longe e embora. E me pegou pelo braço. Sentado mesmo. Mas não doído como a mãe. A mão dele era do tamanho do mundo. E ele pegou quase soltando. Quase um carinho eu acho. E ele falou olhando pra barriga grande e inchada. Falou que me levava junto. Que eu ia com ele. Embora e longe. E me olhou no olho. O olho dele fundo de roxo. Não dava nem pra ver a cor. Nunca tinha olhado pros olhos dele. Não sabia a cor. Os meus eram amarelos. Amarelos como aquela terra burra e longe. Pra onde longe? Eu já estava longe. Mais longe a cada arrastada da mãe. Ele me olhou no olho, fungando, sangue escorrendo pro chão. Vamos embora daqui, vamos. E eu pensei na mãe. Na casa. Nos irmãos burros que só serviam pro gol. Pensei no olho apertado e no cigarro. No quintal e no branco. Na pedra e no sabão. No dinheiro e no Pablo do outro lado da rua. Tudo branco de queimar o olho. E sempre doía. Sempre. Mas longe, longe não ia doer. O Juan disse. Ele falou e me olhou no olho. Hoje mesmo. Bem longe. Segurava meu braço com a mão do tamanho do mundo. E não doía nada. Nada.

Por dentro (conto)Where stories live. Discover now