Te amo, mas preciso ir

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Deitado numa rede com um convite de casamento jogado sob sua barriga. Foi naquele momento em que decidiu largar tudo e definitivamente viver o que tanto tinha medo de tentar.

Isso foi o que ele me disse dias depois quando estávamos sentados à mesa jantando uma comida fria após um dia inteiro jogados na cama exaustos de tanto assistir filmes e fazer amor. Olhando em seus olhos, pude saborear a sinceridade em suas palavras, mas não a segurança de que era aquilo que ele realmente queria, o questionei sobre sua vontade e ele me repreendeu dizendo que as coisas estavam sendo exatamente do jeito que tinham que ser.

Eu, uma mulher de trinta e cinco anos, independente e dona de mim estava sendo repreendida por um homem dez anos mais novo que mais parecia ter vivido muito mais que eu em qualquer aspecto. Isso não era ruim, até porque a gente se entendia perfeitamente bem, gostávamos das mesmas coisas e sabíamos superar as adversidades como ninguém, mas eu ainda tinha dúvidas, não acerca do sentimento dele, mas sobre a sua satisfação em ter largado tudo para viver ao meu lado.

Nos conhecemos meses antes em uma festa com amigos em comum, eu, turista em viagem pela primeira vez a São Paulo, sequer procurava alguém para suprir minhas necessidades emocionais e estava ali apenas compartilhando amizades, rindo sobre tudo e bebendo o quanto podia. Ele, nascido e criado ali, diferente de todos os outros, talvez até culto demais para se misturar àqueles, exalava confiança em sua fala e bebia como eu nunca havia visto alguém beber, mas mesmo assim não perdia a pose em falar. Não reparei que naquele momento eu havia me apaixonado. Que destino filho da puta!

Ele me encantou, isso é fato. Sua voz firme, sua facilidade em falar sobre tudo e com quem quer que fosse, seus olhos seguros e confiantes me mostravam que eu era incapaz de tentar fugir dele, a cor da sua pele me induzia a desejar sua carne de forma absurda e desenfreada e sua indiferença a mim me torturava ainda mais. Era tão articulado que não pedia atenção quando falava, mas ainda assim prendia todos ao seu discurso. Eu fui presa!

Voltei para Santa Catarina, minha casa, meu canto, minha vida normal. Trabalhava em uma igreja dessas que tem como função principal arrancar dinheiro dos fiéis, não concordava em quase nada com eles, mas ali permanecia porque a obrigação deles comigo era cumprida. Depois do trabalho, ia para a escola compensar a perda dos doze anos em que estive presa a um casamento que se equiparava a uma prisão de segurança máxima e agora tentava, às pressas, recuperar a dignidade que os estudos trazem ao ser humano.

Meu corpo voltou para casa, mas minha mente ainda estava lá, ficou presa aqueles olhos castanhos escuros e aquela voz segura. Depois de muito ponderar, criei coragem e pedi a ele seu número de telefone, no início eu tentava caçar assunto para prendê-lo, mas ele parecia ter assuntos muito mais importantes para tratar porque pouco depois do início da conversa sumia e só voltava quando eu o chamava dias depois. Adorava viajar, estava sempre num lugar diferente e postava as fotos para mostrar para os amigos e também para avisar a família que estava bem. Ele sempre estava bem.

Num sábado qualquer, o chamei para perguntar sobre uma de suas viagens e foi aí que tudo começou de fato. Conversávamos sobre tudo e por horas, nos tornamos dependentes um do outro, a todo momento eu queria ouvir sua voz, ver seu rosto, ter sua atenção e quando percebi, estávamos apaixonados. Eu consegui conquista-lo, ele jura de pés juntos que foi o contrário, mas eu acredito que não foi isso. A verdade é que nossas almas finalmente se encontraram.

No dia em que eu o vi descendo daquele avião com as malas cheias, percebi que meu coração o teria para sempre como morador, ele me abraçou e me beijou como nunca nenhum homem havia feito antes e tive a certeza de que aquilo que estava sentindo era algo novo, único e real. O amor.

Vivemos dias lindos, os melhores que eu sequer havia sonhado viver. Ele era romântico, trabalhador, centrado e o melhor: era justo. Nunca deixava alguma coisa errada acontecer sob suas vistas, a única coisa que evitava era falar sobre seu passado, dizia que eu sabia o que tinha que saber e isso já bastava. Parecia ter sofrido muito e isso o transformara num homem forte e destemido, protetor e precavido, algo que me tranquilizava a cada dia que dormia e acordava sob seus olhos me velando.

Ganhava a vida como escritor, contava sobre tragédias inventadas, cenas engraçadas que só aconteciam em sua cabeça e casais românticos que sempre ficavam juntos no final. Amava o que fazia e isso me fazia apaixonar-se ainda mais por ele.

Nos amávamos todos os dias onde podíamos, na cama, no chão, na praia, no chuveiro, na hora em que dava vontade. Ele me possuía como deveria ser, às vezes como um lorde, noutras como um animal sedento, sabia me respeitar como ninguém e me tratar como uma rainha. Eu que pensava que esse amor um dia pudesse acabar me surpreendia cada vez que abria os olhos.

Ele enaltecia meus olhos verdes, quase que os adorava e ficava por longos minutos os observando até que eu me sentia em transe e me desvencilhava de sua veneração. Nunca estava triste e nunca deixava de dizer que me amava, o que me garantia que eu o fazia feliz e me fazia mostrá-lo que a recíproca era sim verdadeira.

Em uma segunda feira, após voltar do trabalho, cheguei em casa e notei algo diferente. O aparelho de som cantava uma música triste no mais alto volume, algo incomum para alguém que prezava tanto pelo silêncio, as portas e janelas estavam todas fechadas e a voz dele não se fazia ouvir. Encontrei-o no quarto, estava com um sorriso no rosto. Aquele mesmo sorriso que vi no aeroporto quando ele decidiu vir para ficar. Estava também com os olhos bem abertos como se quisesse me dizer que sempre estaria atento a tudo ao seu redor, não segurava a caneta que era sua companhia do fim de todas as tardes, mas estava acompanhado de um papel amassado que selava o fim de um ciclo. Acabava ali uma história e começava outra, mas parecia estar tudo bem.

Ele estava atônito, feliz, aparentemente realizado.

Estava preso por uma corda ao ventilador de teto.

O papel amassado gritava para os meus olhos e o meu coração.

"Te amo, mas preciso ir."

DesconcertosOnde histórias criam vida. Descubra agora