Guerra

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E aqui estou nesse terreiro de samba, ouvindo o trabalho do céu.

Aqui estou, nesse terreiro de guerra, ouvindo a batalha do céu.

Cordel do Fogo Encantado


Passos desandaram, marchas ascenderam. Clarins e tambores ressoaram pelo ar. Vozes de ordem almejaram organizar e condensar o interesse de poucos na luta de muitos que nem sabem porque lutam e a mais pura caoticidade se delineou de forma natural em nome duma não naturalidade institucional.

O sol varou os varões e fez chorar as crianças, todas, em fila, pelo seco caminho, esburacado destino, o circo dos arranha-céus, sinfonia lúgubre da mente do sistema.

Ora, Ariovaldo não conheceu vida que não se baseasse no escambo, trocas que não fossem verdadeiras. E esses sujeitos todos engomadinhos iam dizimando a própria população, jogando-os em guerra, feito maquinas, feito animais, feito o despedaçar sangrento de uma flor pelo bafio rugido da fuligem. E tudo isso em nome de nada! De nada!

Era o que dizia o inflamado Ariovaldo, reverenciando cada pequena palavra e gesto seu, deixando a grisalha juba chacoalhar ao vento que engolia a janela do bar que ficava no segundo andar do antigo Hotel Linus.

Chovia e sem sentir a perna esquerda Ariovaldo sorvia o copo matizado de alcoolia ao passo que a poeira se diluía pelo ar. As mesas burburinhavam, a foz de cerveja jorrava e, ao fundo, como se não existisse, como se fosse o fantasma de uma sensação, como fosse um vento esquecido de ir embora, soava um violino.

Agudo, que por si só, como as laminas das espadas, a explosão das baionetas, cantava algo já olvidado a muitos tempos enquanto as nuvens empanturravam o firmamento de nevoa desordenada. Enquanto as montanhas cochichavam no pé do ouvido da atmosfera.

Cavalos correram pelo campado e o clarim tocou ecoante, a mensagem foi sendo transmitida, corpo a corpo, humano pra humano. Soldados perfizeram-se em fila geométrica, os canhoneiros foram abastecidos de pedras tiradas da ruína do velho castelo e dezessete arqueiros deixaram a fluência humana acontecer esperando de campana.

O baobá da clareira vinha escutando as vozes arribando aos poucos, conforme movimentavam-se as gentes, no passo que se inflava o ar de áurea e o sangue jorrava desenfreado por ai. Cresciam as mortes mas vinham crescendo também os ventos vozerios, as ondas de todo e cada rio. O mar do ar inflou o momento. Quem chegou primeiro foi Oxossi e abraçou todos seus filhos com o verde florestal.

Abelhas zamzaram e picaram os inimigos, pernas se engarrancharam nos cipós, desmoronamentos de terra ilharam esquadras e soterram completamente sem avisar inúmeros acampamentos estratégicos. Marimbondos morderam bundas. Quem cruzava o rio foi engolido pelo golfo repentino das águas e os sanguessugas não deram sussego para as peles humanas. Tiraram sangue também.

Os bem-te-vis olharam feio pra todo sujeito de farda azul e as cobras serpentearam sorrateiras pelo compasso da luta constante. Baionetas relancearam e a pólvora explodiu barulhenta, árvores tombaram e embarcações afundaram, cavalos correram frenéticos por ai.

Ariovaldo já não agüentava mais ouvir falar de guerra. Anos e mais anos existindo na mesma sensação, na exata situação inexata da insegurança constante, da paz mais que distante, da morte em nome da morte da vida, tanta morte e morte e justificações e mortes e mortes e na verdade eram tudo desculpas esfarrapadas, encobrimentos pra insaciável animalesca sede antinatural pelo papel moeda.

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⏰ Last updated: Jan 08, 2018 ⏰

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