namasté

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a melodia suave enchia o cômodo decadente, saindo aos poucos para a rua pela janela que um dia foi imponente. as flores pintadas no teto já não eram mais belas, descascavam à meia luz. as outras flores, escondidas sob a cortinas velhas e desfeitas, as flores reais, perdiam toda a vivacidade e murchavam ao sol da tarde. flores secas, uma janela onde não mais se via vidro e paredes descascando. a própria imagem da paz, pelo menos para ela. não parecia real. parecia uma pintura, uma fotografia encenada para colocar na internet, manipulada, montada. não parecia real.

mas era. o braço se deixou passar pelos lençóis e depois pela cama, e ela deixou-o cair, uma ação seca, sem leveza. a melodia se reiniciava pela terceira ou quarta vez, contrastando com suas ações. sentiu a leveza da música, sentiu a gravidade daquele cômodo. ela sentiu a atmosfera, sentiu as estrelas. sentiu cada ponto de esperança e felicidade, e sentiu as dores dos outros, dos doentes e sofridos. e depois de tanto sentir, ela despertou. levantou. posicionou-se em meio às flores secas espalhadas pelo chão, aos pincéis que habitavam o cômodo e à luz. um pé, depois o outro. então, a música suave recomeçava a dançar pelas paredes do pequeno cômodo, e ela dançava junto. reviveu ali memórias de um passado antes predestinado a ser esquecido. a melodia que enchia seus ouvidos e o cômodo desde a madrugada terminou, desta vez, definitivamente. ela não sabia se algum dia voltaria a reviver aquilo, ela não queria, então a desligou. limpou as lágrimas que desciam seu rosto com a graça e beleza da melodia que ouviu por horas. empacotou algumas de suas telas e pôs na mochila. prendeu o cabelo e abriu a porta do pequeno cômodo que a aprisionava há anos. o vento quente de fora a abraçou e o sol sorriu para ela. saiu, olhou. sabia que não era fácil, mas ela estava presa há tempo demais.

ela correu. correu e sorriu para o sol, para todos os seres cinza que passavam por ela.

ela chegou à galeria onde um dia viveu a maior parte do tempo. ela entrou, deu bom dia. disse que tinha algumas telas a venda. avaliaram, perguntaram.

"esta parece especial. qual o título?"

"namasté. 'o deus que habita em mim saúda o deus que habita em você.' esse é o significado."

"ficamos com esta."

ela sorriu, recebeu o pouco dinheiro que a arte oferecia. a arte era cruel, demandava dos seres mais diferentes para que a fizessem, em troca de nada. mas é disso que se obtém a paz.

ela sorriu mais uma vez, agradeceu. deu bom dia e saiu pelas ruas. sentou-se em um parque. um senhor de olhar vazio e doloroso, a viu e encarou. não apreciava sua presença. ela, mesmo assim, olhou, sorriu.

"namasté".

namasté | concluídoWhere stories live. Discover now