Caminhada

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Décimo quarto dia. Ela abriu os olhos deitada na cama, com o sol invadindo toda a extenção do quarto, e junto com o mover dos cílios se aproximou lentamente o exército de lembranças que a muniria de respaldos para ela pensar que não-valia-a-pena-continuar-naquela-lida. Mais uma vez o equívoco os sorrisos, as histórias, os encontros, e desencontros de toda a sua repetitiva-rotina. Ela era pobre. Não tinha um closet; corselet; fragância fracesa, nem bambolê. Seus cabelos sim, eram vermelhos ; a pele , bem clara , contornavam os olhos imensos e azuis . O corpo, roliço e hiperativo , trazia consigo o desejo de voar , pedalando a bicicleta-dourada sobre as novens presas no céu de cor laranja . E assim passou parte de sua a infância, e também adolescencia, escapulindo pra lá, somente quando todos estavam dormindo. Lá nas nuvens, leve como pluma, se espojava e se esbaldava so-zi-nha, totalmente absorta, rolando, deitando, correndo numa imensidão sem fim; e nunca pedia licença para entrar ou sair, apenas ficava perdida naquelas tonalidades de laranja, abóbora, salmão e suas duzentas variedades... Tanto-é, que não podia ver as tais nuances na casa-da-rua-escura, sem árvore, de quintal pequeno e muro baixo. A cor daquela casa, naquele caminho sorumbático, inquietava a menina, que contraía os músculos até doer-sem-sentir dor, fazendo-a caminhar trôpega , sem contar pra ninguém. Quanto lembra disso, as lágrimas escorrem salgadas pelo canto de sua boca, e termina engolindo o gosto viscoso do choro contido há muito tempo. Respira fundo. E lá vem mais recordações de um-monte-de-coisas que fazem inúmeros sentidos, e assim mesmo se desfazem no ar. O que alenta essa menina é aquele poeta distante lá-do-cafundó-do Judas com sua cantilena aguda clamando por alívio. Como ele, a menina passa a vida a juntar quinquilharias, e vai amontoando uma a uma no farnel de seus ombros. Ela não sabe por que, suas pernas estão mais grossas, um tanto doloridas, porém firmes e determinadas a carregar o corpo roliço e os braços em riste, segurando uma grande montanha quase alcançando o céu, entulhada de trecos. Lá vai ela, solitária, perpediculante, peregrinando vagarosa, firme, destemida, afanada pela vileza do triste enfado e enganoso sobrepeso... Sua estrada não assusta, é um terreno descampado, sem bichos ou árvores para lhe assoberbar. Ela é vista ao entardecer; e por incrível que pareça, o firmamento apresenta a mesma tonalidade das nuvens de cor salmão... Lá vai ela, cheia de badulaques, tão lenta serena e bela carregando aquela imensa trouxa, balançando suavemente pra lá e para cá, parecendo carregar a si própria, num longo e eterno caminhar.

CaminhadaWhere stories live. Discover now